28 novembro 2002

Simulando a vida

Na "New York Times Magazine" de domingo passado, David Brooks (o autor de "Bubos no Paraíso") comentava o lançamento da versão on-line dos "Sims".
Os "Sims" (os simulados) é um jogo para computador que existe desde 2000 e que se tornou extremamente popular. Nada a ver com os cenários de combate de "Quake" ou "DukeNukem". Nada a ver com o mundo heróico e fantástico de "Final Fantasy". Nos "Sims", os jogadores circulam num habitat parecido com o mundo da classe média (sobretudo suburbana) e são convidados a simular a banalidade da vida.

Você volta do trabalho, prepara o jantar, vai ao shopping, ocupa-se das crianças, chama o encanador, lava os pratos, briga com seu ex, tenta encontrar alguém interessante para sair, paga as contas etc. Quando tudo isso acaba, senta-se ao computador e faz tudo de novo, na tela, simulando. Qual é a graça?

Eu imaginava, inicialmente, que a graça consistiria em compensar as frustrações do cotidiano. Os jogadores poderiam se inventar mais bonitos e mais bem-sucedidos. Aproveitariam a simulação para ludibriar seus superiores e pensar, enfim, no seu prazer. A dita simulação seria, em suma, uma transformação radical.

Mas a razão do sucesso dos "Sims" não foi essa. Frequentei um pouco os sites de discussão para jogadores dos "Sims". Descobri o seguinte: quem joga na esperança de se tornar Indiana Jones ou Lara Croft cansa rapidamente. A maioria dos jogadores assíduos parece inventar máscaras, mundos e dificuldades iguais às de sua vida real.

Até agora, essas eram apenas impressões, pois, como saber o que cada um faz, jogando sozinho com o programa, na intimidade de seu disco rígido? A partir de dezembro, a coisa mudará. Pagando uma pequena mensalidade, os jogadores internautas poderão conviver e interagir no mesmo mundo simulado.

Nos últimos meses, mais de 35 mil pessoas jogaram os "Sims" nesse mundo virtual comum, com o intento de testar o sistema (inicialmente previsto para 1 milhão de jogadores). David Brooks teve acesso a esse teste e confirma: o barato dos "Sims" consiste em duplicar as tribulações do cotidiano, não em escapar para outra vida. Estranho? Nem tanto.

Somos todos Madame Bovary. Ou seja, podemos viver na mediocridade, mas sonhamos com grandes paixões: meu trabalho é chato, meu parceiro não transa direito e fala pior ainda, mas leio Bárbara Cartland e assisto a "Titanic". No entanto, à diferença de Madame Bovary, nós somos leitores de "Madame Bovary", o livro. Ou seja, fugimos, como ela, enveredando em sonhos extremos de amor e de aventura, mas nem toda a ficção, para nós, é evasão ou compensação. Às vezes, gostamos de sonhar com a vida que temos e queremos histórias que mostrem a banalidade medíocre de nossos dias, histórias, por exemplo, que contem a vida de Madame Bovary. Por quê?

Pelas mesmas razões pelas quais se escrevem diários: para que a vida de cada dia tenha a dignidade de uma história contada. Os diários provam que a vida deve valer, ao menos, a tinta necessária para contá-la. Os "Sims" têm a mesma função: se volto para casa e simulo meu dia na tela, é uma maneira de afirmar que minha vida merece ser contada ou simulada. Quem sabe o jogo no universo paralelo dos "Sims" reavive, em nossa cultura, o carinho pela vida como ela é.

Há um outro interesse dos "Sims". Em sua versão on-line, o jogo será um laboratório. Psicólogos e sociólogos terão acesso a um universo construído por milhões de pessoas que, interagindo, inventam uma vida em comum. É uma extraordinária ocasião de descobrir e medir modelos culturais, ideais sociais, tendências etc.

Um exemplo, desde já. David Brooks relata que, durante o teste do sistema, Will Wright (inventor dos "Sims") foi impressionado pelos esforços que muitos jogadores consagravam à tarefa de encontrar amigos que quisessem compartilhar casa ou apartamento (isso no mundo virtual dos "Sims"). Parecia que eles estavam mais preocupados em constituir um grupo de faixas com quem dividir o aluguel do que em procurar uma alma gêmea com quem viver a dois.
A observação de Will Wright me fez pensar num adolescente com quem tenho conversado um pouco nestes dias. Durante o colégio, ele não teve sorte em amor e conheceu só prazeres solitários. Chegado à universidade, eis que ele gostou de uma moça que gostou dele. Passaram um ano juntos, felizes. De repente, ele quer sair da relação porque, declara, tem nostalgia "do grupo dos amigos".

Há razões singulares para essa vacilação, mas a observação de Will Wright aponta para uma explicação cultural imprescindível.

Para a geração que chega hoje à idade adulta, o ideal de uma vida que valha a pena não é dramático e intenso, não é, por exemplo, uma paixão amorosa. Ao contrário, a vida sonhada é leve (ou leviana?) como uma sucessão de piadas entre amigos. Seu modelo não é mais a novela, brasileira ou mexicana que seja, mas o seriado: justamente, "Seinfeld" ou "Friends", em que não há amores, só amigos engraçados que vivem juntos e se divertem. Como se divertem...

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