27 março 2003

Notas à margem dos primeiros dias de guerra

1) Na véspera da guerra, Michael Moore, o diretor de "Tiros em Columbine" (Oscar de melhor documentário), escreveu numa carta a George Bush: "Dos 535 membros do Congresso apenas um tem um filho ou uma filha recruta nas Forças Armadas. Se você quer defender a América, mande imediatamente, por favor, suas filhas gêmeas para o Kuait e deixe que elas vistam os macacões de proteção contra as armas químicas. E oxalá cada membro do Congresso com um filho em idade idônea também ofereça suas crianças para o esforço bélico de hoje. O que você está dizendo? Você acha que não vai dar? Pois é, olhe que surpresa, nós também achamos que não vai dar!".

Michael Moore é um ativista de esquerda, que se opõe à guerra. Mas ele não pertence aos salões acadêmicos e progressistas da Califórnia e da Costa Leste dos EUA. Fala com a voz dos que têm filhos no Exército: os trabalhadores manuais, os pequenos comerciantes e fazendeiros da América profunda.

No segundo dia das hostilidades, escuto Michael Savage, um radialista de extrema direita, apaixonadamente favorável à guerra. Savage, quase lírico, comenta que os rapazes que estão a caminho de Bagdá aprenderam a atirar com seu pai ou seu avô, caçando nos bosques e nas planícies do país. Acrescenta: "Eles estão acostumados a calçar botas, enquanto, nas areias do Iraque, não vejo muitos mocassins elegantes...".

A discórdia entre os pacifistas e os que são favoráveis à guerra agita as ruas dos EUA. Mas existem outras divisões na sociedade americana, talvez mais cruciais.

2) A festa da Bolsa, nos anos 90, foi um desastre para a nação: a farra do capital financeiro zombava das pequenas classes médias, o dinheiro fácil para os poucos que especulavam transformava os humildes em otários. Durante um tempo, instaurou-se no país a Lei de Gerson. Sabemos como ela abala os alicerces de uma sociedade.

O ataque de 11 de setembro de 2001 reconstituiu a nação periclitante. Um mês depois, havia desempregados do Michigan ou fazendeiros expropriados do Nebraska que vinham de ônibus para Nova York: comovidos e orgulhosos, visitavam a mesma Wall Street que, um ano antes, tinha acabado com suas pensões e, às vezes, com seu trabalho.

A guerra prolonga aquele momento: todos são de novo americanos por combater um inimigo comum ou, simplesmente, por combater. Os anos de Clinton aparecem, na lembrança, como um tempo em que a América se perdeu numa futilidade yuppie.

3) Um conhecido europeu comenta as sondagens de opinião (nos EUA, 70% a favor da guerra): "O que há com os americanos? Eles gostam de uma luta?". Respondo: os EUA são a última nação ocidental que se define pela guerra. Concebidos numa revolução, consolidados pela guerra civil e pela conquista do território arrancado aos índios, vitoriosos nos dois conflitos mundiais, eles vivem uma épica nacional essencialmente militar: ser americano implica comprar brigas. Com esse espírito, Hollywood diverte e seduz o mundo, mas, na realidade, é um espírito que não sai barato para ninguém.

Há mais: o país continua sendo uma nação de imigrantes. A cada dia, uma extravagante variedade de povos e etnias chega para inventar uma nova vida. O sonho de bem-estar não basta para cimentar a nação. Talvez o país precise periodicamente de uma guerra para consolidar essa massa versicolor. É a hora do combate: vejam se vocês se tornaram americanos.

4) CNN, NBC e Fox, com 24 horas de noticiário, batem recordes de audiência noite adentro. Por que é tão difícil desligar a TV?

Nas noites de Carnaval, voltando do sambódromo, ligamos a televisão e, embora exaustos, queremos mais Sapucaí. É que o desfile é um ícone de brasilidade. Contemplá-lo é um prazer narcisista: "Lá vou eu".

Pois bem. As imagens desta guerra, para os americanos, são um conforto narcisista, uma música que diz: "Com nossa potência, com nossa falta de jeito que transforma as boas intenções em "danos colaterais", com nossos mortos e feridos, lá vamos nós".

5) Sábado, em Chicago, duas manifestações se enfrentam: contra e a favor da guerra. Um repórter, plantado entre as duas, entusiasma-se: "Dois grupos opostos manifestando idéias opostas, essa é a América". A própria divisão da nação é chamada a enaltecer sua existência: "De novo, mesmo divididos, lá vamos nós".

6) Madrugada de domingo. Desligo a televisão e fico em silêncio na escuridão. Cortei quando um apresentador perguntava a um repórter que acompanhava as tropas: "What is happening now?", o que está acontecendo agora?

Pois é, logo agora, mil Josés e mil Marias estão esperando que chegue o dia para saber o resultado de uma biópsia ou de um exame de sangue. Agora, estão nascendo crianças. Alguém diz adeus a um amado que morre, e alguém, acordado pela vontade de urinar, está olhando para sua própria cara amassada, no espelho, perguntando-se se tolerará envelhecer. Agora, há casais abraçados na cama, e outros que estão transando em carros, elevadores e cantos escuros. Essas são as informações. A guerra deveria vir no fim do noticiário.

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