20 março 2003

Outsider

Tempos atrás, um de nossos filhos pediu que o aniversário de seus dez anos fosse celebrado com uma festa dançante. Os meninos ficaram num canto batendo papo, e as meninas, no canto oposto, dançando, às vezes, mas entre si. No entanto, no fim da tarde, os dois grupos se aproximaram. Formaram-se alguns pares que se aventuraram nos agitos do rock e, logo, seríssimos, se enlaçaram nas lentas. Tudo isso com uma certa vergonha e muita distância recíproca.

Nem todo mundo entrou no baile. Outros convidados ficaram brincando de esconde-esconde. Alguns meninos subiram até uma sacada que dominava o espaço onde se dançava e começaram a cuspir. A graça era acertar na cabeça dos dançarinos. Claro, eram jovens demais para deixar o conforto do clube do Bolinha e sentiam-se excluídos: imaginavam que, se eles pedissem para dançar, as meninas ririam de suas caras. A humilhação prevista era compensada pelo exercício da gozação: são ridículos, cuspa neles.

Acalmei os jovens dissidentes e cuspidores. Mas sentia uma certa simpatia por eles: afinal, eles eram a instância crítica do momento. Manifestavam que, de fato, a festa em curso era uma farsa.
Outra cena: um grupo de adolescentes entra num clube. Alguns vão direto para a pista, empolgam-se e dançam sem saber com quem. Outros aproximam-se do bar e entram em conversas animadas. Mas sempre há alguém que não se encaixa: fica afastado, observa e pensa.

Excluído por sua incapacidade de enturmar-se, eventualmente ressentido, ele procura conforto no esforço de sua jovem inteligência. Despreza a facilidade com a qual os outros se entregam à frivolidade. Tenta se lembrar da seriedade trágica da vida: morte, doença, separações, covardias, miséria, conflitos, falsa consciência. A crítica é, para ele, uma maneira de conquistar um lugar no mundo: não consegue dançar na pista e resolve sua solidão assumindo a função de cassandra.
No melhor dos casos, esse jovem reconhece também que seu exercício crítico é apenas uma compensação narcisista: não sei brincar, mas -olhem para mim- contemplo de cima a fatuidade do mundo.

Outra cena ainda: um balneário italiano, no começo dos anos 70. Deito na areia, deixando que o sol seque a umidade do inverno. Aproveitando a coincidência pela qual passávamos as férias no mesmo lugar, devia encontrar, na praia, um editor de "Rinascita", a revista semanal do PCI. A redação tinha aceitado que resenhasse a tradução italiana dos "Escritos" de Lacan, e tratava-se de decidir o ângulo do texto. O editor era reconhecível de longe: saído de um filme de Fellini, estava sentado embaixo de um guarda-sol, de terno escuro, camisa branca, gravata preta, paletó abotoado, meias e sapatos de couro na areia. Ele parecia cultivar sua própria exclusão da praia e do mundo, como se essa fosse a condição necessária de seu olhar crítico. Na hora, me perguntei: ele pensa porque é excluído ou é excluído porque pensa?

Estou lendo "Harvard and the Unabomber, the Education of an American Terrorist" (Harvard e o Unabomber, a educação de um terrorista americano), de Alston Chase. É uma excelente reconstrução da formação e da época que produziram o Unabomber, o ex-professor universitário de matemática que traduziu sua revolta (banal) contra a tecnologia numa série de assassinatos. Chase define o clima cultural do drama a partir de um livro que, no momento de sua publicação, em 1956, foi um best-seller: "O Outsider" de Colin Wilson. Wilson escrevia: "Será que ele é um "outsider" porque é frustrado e neurótico?" ou, então, será que ele é neurótico porque "enxerga mais fundo"?

Não há propriamente contradição entre essas perguntas. Na modernidade, pertencer a um grupo torna-se um esforço. A comunidade nacional não é uma fatalidade, pois podemos viajar e migrar. A família originária, da qual somos filhos, longe de ser o grupo ao qual pertencemos com certeza, é o grupo contra o qual afirmamos nossa independência. A família que, eventualmente, inventamos é fruto de difíceis encontros amorosos. A classe social depende de nosso sucesso. Em suma, encontrar uma turma é laborioso e incerto. O destino do "outsider", estranho e estrangeiro, é, para nós todos, quase natural.

Por isso mesmo, talvez, a modernidade seja a época da mais viva inteligência contestatária. Quem não se entrosa justifica sua presença no mundo pela crítica. Entrar na dança é duvidoso, resta-nos cuspir na cabeça dos que se mexem segundo um ritmo comum.

Escrevo esta coluna na segunda-feira, dia 17, à noite, em Nova York. Bush acaba de anunciar o ultimato de 48 horas. Ontem, desfilaram os pacifistas. Hoje, na televisão, desfilam os guerreadores. É também o dia de Saint Patrick, patrono dos irlandeses. Pelas ruas da cidade, erram músicos das bandas de gaita de foles que marcharam na Quinta Avenida. De vez em quando, tocam "Danny Boy": réquiem e hino. Sentado numa praça, olho para o céu atravessado por um helicóptero da defesa civil. Sinto-me como o adolescente que, no clube, não conseguia enturmar-se com ninguém.

Nenhum comentário:

Postar um comentário