Estou lendo "A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno", de Colin Campbell (Rocco). A idéia de fundo é a seguinte: a sensibilidade romântica (que começou bem antes do romantismo) produziu a sociedade de consumo.
Eis um traço romântico que permanece em nós e que explica nosso consumismo: é a recusa de sermos reduzidos ao "aqui e agora". Sou mais do que os quilos de meu corpo, a suma de meus haveres, a rede de meus amigos e mesmo o conjunto de meus pensamentos. Minha vida só se justifica pelos sonhos que ainda não se cumpriram. Um dia, viajarei para lugares e futuros em que serei outro e darei a plena medida de mim mesmo.
Graças a nosso romantismo, caminhamos pela vida puxando atrás de nós uma ou várias pipas. Às vezes, são pipas caídas que vêm se despedaçando pelo asfalto; outras vezes, as pipas estão tão altas acima da gente que é impossível enxergar a linha que as mantém sob o controle de nossas mãos. De qualquer forma, arrastadas pelo chão ou perdidas no céu, as pipas nos representam: não olhem para mim, olhem para a pipa, é lá que estou. Não julguem meu modesto ser, mas meus sonhos. Eu pipo, logo sou ("pipar", nas ruas ao redor da estação da Luz, significa fumar crack, que é uma maneira desastrada de empinar a pipa da gente).
O menosprezo pelo que somos e pelo que temos, junto com o culto do que poderíamos ser e ter, sustenta uma sede de mudança e de aquisição, ou seja, uma fantástica economia de consumo.
E não é estranho que o consumo de massa (geladeiras para todos) tenha sido uma etapa fugaz.
Nossa pipa é o equivalente do gonfalão da antiga nobreza: deve assinalar de longe quem somos e a que viemos. Dela esperamos que diga por que somos especiais e inconfundíveis. A vida pode nos igualar na necessidade e nas frustrações, mas contamos com as fantasias para provar que somos livres e, portanto, únicos.
Por isso, poucas idéias nos indignam tanto quanto a suspeita de que nossas pipas sejam manobradas por outros. Podem nos prender, mas ai de nós se uma potência misteriosa escrevesse o script de nossas fantasias. Ela uniformizaria os sonhos que devem garantir os vôos livres de nossa individualidade. Admito (a contragosto) que as Wall Streets da vida me oprimam realmente, mas não que Madison Avenue (pátria do marketing) e Hollywood me subjuguem. Isso não: minhas pipas não são papagaios.
"Matrix" nos fascinou justamente com esse pesadelo. Éramos todos tristemente iguais, adormecidos num mesmo líquido amniótico e sugados como baterias elétricas. Até aqui, tudo bem (em termos, claro). Mas, nesse sono artificial, nosso cérebro, intubado, recebia as instruções de um código comum, a matriz, que regia nossas vidas sonhadas. Isso não dá: o que nos sobra, se o outro que nos tira a vida também decide nossos sonhos?
Agora, "Matrix Reloaded" é acusado de trazer só um suplemento de efeitos especiais. Neo, Trinity etc. seguem combatendo o domínio da matriz: penetram sua realidade virtual lutando como vírus no sistema e, de fora, na "realidade", militam na resistência da cidade dos homens livres. Ou seja, parece a mesma história. Mas não é: o novo filme é mais complexo e doloroso que o precedente.
Considere a continuidade entre os momentos em que Neo luta dentro da matriz e aqueles em que o conflito seria "real", entre a matriz e os heróis não intubados. Aparentemente, o que nos empurra a combater a matriz é uma fantasia heróica igualzinha às que a matriz permite e, quem sabe, encoraja. Aliás, num momento crucial do filme, é apresentada a Neo a hipótese de que sua luta contra a matriz seja apenas uma figura que a própria matriz produz e repete ciclicamente.
Em suma, o script preestabelecido de nossos sonhos pediria que sonhássemos também com nossa rebelião contra o script. A revolta seria mais uma figura da obediência à matriz.
Lembro-me de minha consternação quando descobri que a contracultura dos anos 60 foi fomentada pelo marketing dos anos 50, segundo o qual uma nova vontade de todos serem diferentes estimularia formas inéditas de consumo.
É possível que o terceiro filme previsto acabe, babacamente, com o triunfo dos homens livres. Mas resta que "Matrix Reloaded" propõe uma meditação interessante e sombria: talvez nossa melhor rebeldia contra a dita indústria cultural não passe de uma pipa manobrada pela mesma indústria.
Na Folha de 23 de maio, Cassiano Elek Machado entrevistava Jean Baudrillard, filósofo que escreveu alguns livros excelentes e outros menos, como "Simulacros e Simulação". Ultimamente, com base nesse livro, em vez de sonhar em ser versado nas artes marciais e assim salvar o mundo, ele sonha em ser um intelectual francês que salva o mundo denunciando os simulacros da matriz. Baudrillard declarou não ter gostado de "Matrix Reloaded", embora não o tivesse visto. É uma pena. O filme o teria ajudado a se colocar a pergunta: será que meu sonho não é tão previsto e manobrado pela matriz quanto os pulos e as pancadas de Neo?
29 maio 2003
22 maio 2003
Você sabe morrer?
No sábado passado, em São Paulo, participei do evento "A Vida nos Tempos da Cólera", promovido pela Atua, uma ONG que proporciona acompanhamento terapêutico para pacientes da rede pública de saúde mental.
Durante um diálogo que acontecia nesse contexto, Jurandir Freire Costa lembrou um recente curta-metragem de Fernando Mozart, "Porão", para observar que, nos jovens ex-soldados do narcotráfico entrevistados no filme, manifestava-se uma disposição belicosa peculiar. Eles não pareciam ser motivados pela intenção de arrancar posses, mas pela vontade de ver o outro tremer na alça de mira. Nada de "passa a bolsa", mas um requinte de irrisão: vamos ver se você ainda se faz de bacana contemplando o buraco escuro do cano deste 38.
Penso que as bombas na zona sul do Rio e os ônibus incendiados e metralhados falem a mesma linguagem: você tem alguma riqueza ou, simplesmente, um trabalho, um futuro e uma casa para a qual voltar, mas isso não basta; para ser dono do pedaço, é preciso saber morrer. Você topa?
É uma nova rodada do jogo do mestre e do escravo. Segundo a regra inventada (ou descoberta) por Hegel, fica como mestre quem está disposto a arriscar a vida. Quem prefere preservá-la é destinado a servir.
Ora, a certeza da morte iminente é o preço que os soldados do tráfico pagam para ser, por uma temporada, donos do mundo. E nós? Trememos diante da arma apontada porque achamos que temos algo a perder. Quem treme perde o jogo.
No meio dessas reflexões, sábado à noite, fui assistir, no Espaço Satyros, a "A Filosofia na Alcova", peça de Rodolfo Garcia Vasquez que adapta o livro do marquês de Sade. O espetáculo não poupa nada da virulência do texto sadiano: masturbação, blasfêmia, ingestão de urina e fezes, estupro anal e matricídio vão da página escrita para a cena, sem sombras pudicas. A eventual indignação do espectador não tem por que endereçar-se à bravura dos atores. Melhor reservá-la para o que está sendo representado: a crueza das gestas de quem consegue abandonar a referência a qualquer valor (convencional ou divino).
A história é conhecida: na França do fim do século 18, um casal de libertinos impõe um curso acelerado de materialismo radical (prático e teórico) a uma jovem de "boa" ascendência. A jovem aprende rápido: se Deus não existe e se a moral é só uma convenção repressora, por que não perseguir o gozo a qualquer custo?
"A Filosofia na Alcova" vale também como uma premonição social. Quando Sade escrevia, acabava de desmoronar um sistema em que o poder era um atributo da nobreza do berço.
Estava surgindo uma nova classe que justificava sua autoridade apresentando-se como dona da moral, ou seja, dos valores burgueses da família e do trabalho. Essa classe, aos poucos, ganharia em cinismo e reconheceria a riqueza como fundamento de seu domínio. Com isso, seus expoentes estariam perto de realizar este ideal libertino: um grupo que legitimasse sua superioridade pela demonstração de sua insaciável vontade e capacidade de gozar.
Será que a classe dominante contemporânea realiza essa última figura? Será que o asfalto e os Jardins gozam, enquanto o morro e a periferia contemplam, petrificados talvez pela inveja?
Nada disso. Podemos ser cínicos, corruptos e devassos, mas nos falta a grandeza (por sinistra que seja) das personagens de Sade. O libertino não se poupa nunca, vive no dispêndio, persegue o gozo com uma dedicação digna de melhores causas. O pretenso hedonista contemporâneo, ao contrário, é mesquinho e avaro de si: sua procura do prazer é hesitante, incerta e parasitada pelas precauções com as quais ele quer preservar saúde e longevidade. "Hoje não, amanhã tenho que levantar cedo." "Antes do jantar não, vai estragar meu penteado." A Ilha de Caras não é o castelo dos libertinos, mas apenas um estúdio fotográfico: mais cedo ou mais tarde, os excluídos da festa descobrem que não houve festa nenhuma, só poses.
O dono de fábrica do século 19, último à noite e primeiro de manhã a assinar o ponto, plantado com mulher e filhos na fileira da frente da igreja, impõe respeito. O libertino também impõe respeito pela intransigência de seu gozo. Ambos são mestres possíveis, pois ambos invocam princípios pelos quais estão prestes a sacrificar suas vidas: o primeiro morreria para salvar "tradição, família e propriedade"; o segundo, para arrancar-se um último orgasmo. Eles podem encarar a morte, porque têm uma idéia clara da vida que querem viver.
Não é nosso caso. O cinismo não nos tornou hedonistas, só insatisfeitos e incertos. O materialismo não nos libertou de convenções e valores, só nos levou a confundir o bem com o bem-estar fisiológico. O desrespeito às hierarquias estabelecidas não nos tornou autônomos, só preocupados com o olhar dos outros. Não temos nenhuma razão pela qual morrer porque não sabemos como viver.
Alguém deve ter descoberto essa banalidade. Por isso propõe uma nova rodada do jogo do mestre e do escravo, aponta uma arma e nos pergunta sardônico: será que vocês sabem morrer?
Durante um diálogo que acontecia nesse contexto, Jurandir Freire Costa lembrou um recente curta-metragem de Fernando Mozart, "Porão", para observar que, nos jovens ex-soldados do narcotráfico entrevistados no filme, manifestava-se uma disposição belicosa peculiar. Eles não pareciam ser motivados pela intenção de arrancar posses, mas pela vontade de ver o outro tremer na alça de mira. Nada de "passa a bolsa", mas um requinte de irrisão: vamos ver se você ainda se faz de bacana contemplando o buraco escuro do cano deste 38.
Penso que as bombas na zona sul do Rio e os ônibus incendiados e metralhados falem a mesma linguagem: você tem alguma riqueza ou, simplesmente, um trabalho, um futuro e uma casa para a qual voltar, mas isso não basta; para ser dono do pedaço, é preciso saber morrer. Você topa?
É uma nova rodada do jogo do mestre e do escravo. Segundo a regra inventada (ou descoberta) por Hegel, fica como mestre quem está disposto a arriscar a vida. Quem prefere preservá-la é destinado a servir.
Ora, a certeza da morte iminente é o preço que os soldados do tráfico pagam para ser, por uma temporada, donos do mundo. E nós? Trememos diante da arma apontada porque achamos que temos algo a perder. Quem treme perde o jogo.
No meio dessas reflexões, sábado à noite, fui assistir, no Espaço Satyros, a "A Filosofia na Alcova", peça de Rodolfo Garcia Vasquez que adapta o livro do marquês de Sade. O espetáculo não poupa nada da virulência do texto sadiano: masturbação, blasfêmia, ingestão de urina e fezes, estupro anal e matricídio vão da página escrita para a cena, sem sombras pudicas. A eventual indignação do espectador não tem por que endereçar-se à bravura dos atores. Melhor reservá-la para o que está sendo representado: a crueza das gestas de quem consegue abandonar a referência a qualquer valor (convencional ou divino).
A história é conhecida: na França do fim do século 18, um casal de libertinos impõe um curso acelerado de materialismo radical (prático e teórico) a uma jovem de "boa" ascendência. A jovem aprende rápido: se Deus não existe e se a moral é só uma convenção repressora, por que não perseguir o gozo a qualquer custo?
"A Filosofia na Alcova" vale também como uma premonição social. Quando Sade escrevia, acabava de desmoronar um sistema em que o poder era um atributo da nobreza do berço.
Estava surgindo uma nova classe que justificava sua autoridade apresentando-se como dona da moral, ou seja, dos valores burgueses da família e do trabalho. Essa classe, aos poucos, ganharia em cinismo e reconheceria a riqueza como fundamento de seu domínio. Com isso, seus expoentes estariam perto de realizar este ideal libertino: um grupo que legitimasse sua superioridade pela demonstração de sua insaciável vontade e capacidade de gozar.
Será que a classe dominante contemporânea realiza essa última figura? Será que o asfalto e os Jardins gozam, enquanto o morro e a periferia contemplam, petrificados talvez pela inveja?
Nada disso. Podemos ser cínicos, corruptos e devassos, mas nos falta a grandeza (por sinistra que seja) das personagens de Sade. O libertino não se poupa nunca, vive no dispêndio, persegue o gozo com uma dedicação digna de melhores causas. O pretenso hedonista contemporâneo, ao contrário, é mesquinho e avaro de si: sua procura do prazer é hesitante, incerta e parasitada pelas precauções com as quais ele quer preservar saúde e longevidade. "Hoje não, amanhã tenho que levantar cedo." "Antes do jantar não, vai estragar meu penteado." A Ilha de Caras não é o castelo dos libertinos, mas apenas um estúdio fotográfico: mais cedo ou mais tarde, os excluídos da festa descobrem que não houve festa nenhuma, só poses.
O dono de fábrica do século 19, último à noite e primeiro de manhã a assinar o ponto, plantado com mulher e filhos na fileira da frente da igreja, impõe respeito. O libertino também impõe respeito pela intransigência de seu gozo. Ambos são mestres possíveis, pois ambos invocam princípios pelos quais estão prestes a sacrificar suas vidas: o primeiro morreria para salvar "tradição, família e propriedade"; o segundo, para arrancar-se um último orgasmo. Eles podem encarar a morte, porque têm uma idéia clara da vida que querem viver.
Não é nosso caso. O cinismo não nos tornou hedonistas, só insatisfeitos e incertos. O materialismo não nos libertou de convenções e valores, só nos levou a confundir o bem com o bem-estar fisiológico. O desrespeito às hierarquias estabelecidas não nos tornou autônomos, só preocupados com o olhar dos outros. Não temos nenhuma razão pela qual morrer porque não sabemos como viver.
Alguém deve ter descoberto essa banalidade. Por isso propõe uma nova rodada do jogo do mestre e do escravo, aponta uma arma e nos pergunta sardônico: será que vocês sabem morrer?
15 maio 2003
Transexuais, travestis e afins
O artigo 3º da Constituição situa entre os objetivos da República "promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O artigo 6º estabelece o direito ao trabalho.
Conclusão: ninguém pode ser discriminado ao procurar emprego. Agora, se você for mulher, vista-se de terno e gravata, corte o cabelo com máquina três e coloque um bigodinho falso. Se você for homem, vista-se de saltos altos, meia-calça, saia, peruca e maquiagem (sem excesso, claro). Apareça assim na entrevista para um emprego que corresponde a suas qualificações e veja o resultado.
Pois é, a Assembléia Estadual da Califórnia, EUA, baseando-se nos mesmos princípios da Constituição brasileira, acaba de aprovar e submeter ao Senado uma lei segundo a qual será multado em até US$ 150 mil (R$ 435 mil) o empregador que discriminar transexuais, travestis ou "cross-dressers" (literalmente: aqueles que se vestem atravessando a fronteira entre os sexos).
Você se lembra de "Meninos Não Choram"? O filme contava a história real da jovem Teena Brandon, que viveu como homem e foi estuprada e assassinada por seus "amigos" quando estes descobriram que seu sexo biológico era feminino. O filme estreou em 2000 e, pouco depois, o Estado de Minnesota e vários municípios americanos instituíram leis de proteção a transexuais e travestis.
A lei de Minnesota e o projeto californiano são parecidos. Proíbem a discriminação por razões de gênero e definem o gênero como "identidade, aparência ou comportamento" que podem ser diferentes daqueles tradicionalmente associados ao sexo biológico do sujeito.
Vários homens e mulheres vivem (constante ou ocasionalmente) uma discordância entre seu sexo biológico e sua identidade. São de sexo masculino e se sentem de gênero feminino ou vice-versa. Cuidado: essa distância entre sexo e gênero não é uma preferência sexual, mas um conflito subjetivo no qual o corpo é vivido como estranho. Um homem que tem o sentimento de pertencer ao gênero feminino não é necessariamente homossexual. Inversamente, é famoso, na clínica, o caso de uma mulher que, nas entrevistas necessárias para que fosse aprovada sua operação de mudança de sexo, declarou aos psiquiatras que, sexualmente, gostava de homens. Réplica: então por que mudar de sexo? Não lhe seria mais fácil encontrar os parceiros desejados permanecendo mulher? Ela respondeu que queria ser homem porque se sentia homem. Certo, ela imaginava que, sexualmente, continuaria preferindo os homens. Seria, portanto, depois da operação, um homem homossexual.
O divórcio entre sexo e gênero se apresenta num leque diversificado. Há o transexual decidido a transformar a anatomia de seu corpo. E há o pai de família que, às escondidas, usa roupa íntima feminina. Entre os dois, estão os sujeitos que recorrem a modificações corporais "leves" (depilações, hormônios, silicone).
Ora, essas experiências distintas, que pressupõem personalidades radicalmente díspares, nos parecem todas indecentes. Por quê?
Os opositores da lei californiana argumentam: o dono de uma loja de artigos religiosos será obrigado a empregar travestis. Se a recepcionista da Sociedade Bíblica fosse Danny DeVito de minissaia, isso seria inconciliável com o decoro do estabelecimento.
Podemos simpatizar, mas pergunto: por que um senhor gordinho de minissaia é mais indecente do que, por exemplo, uma jovem anoréxica? Afinal, ambos sofrem de maneira análoga: não concordam com seu corpo. O senhor gordinho discorda de seu sexo, a anoréxica discorda de seu peso.
Eis a questão, rebateriam os opositores da lei: o senhor gordinho tem um problema não de peso, mas de sexo. Errado: na verdade, ele sofre de transtornos de identidade. É para nós que seus esforços para modificar o corpo têm uma significação sexual. Já que não entendemos a separação entre sexo e gênero da qual ele sofre, supomos que ele queira sobretudo gozar em dobro, como homem e como mulher. Aos nossos olhos, ele é um sujeito comandado por uma exigência sexual descomunal: um tarado.
Pouco importa que muitos travestis vivam quase castos, encontrando seu prazer em discretas emoções indumentárias. Nosso estereótipo do travesti implica uma sexualidade descontrolada. E invocamos, como prova, a presença maciça de "bonecas" prostituídas nas ruas. É um argumento hipócrita: a prostituição é uma das poucas soluções oferecidas a quem quer viver uma vida travestida. Aliás, é isso que a lei californiana pretende mudar.
Mas vai ser difícil aprender a conviver com o travesti. Pois nosso olhar o erige em representante genérico de uma sexualidade exacerbada que excita a fantasia de todos.
Um anúncio de acompanhantes especiais, na televisão americana, mostra corpos femininos dotados de pênis. Uma voz em off comenta: "O que é você? Um "ele" ou uma "ela'? Não sei, mas você é certamente feito/a para o sexo".
Em suma, para que a lei californiana "pegue", quem vai colocar dificuldade não são os travestis atrás do Jockey Club, mas seus clientes.
Conclusão: ninguém pode ser discriminado ao procurar emprego. Agora, se você for mulher, vista-se de terno e gravata, corte o cabelo com máquina três e coloque um bigodinho falso. Se você for homem, vista-se de saltos altos, meia-calça, saia, peruca e maquiagem (sem excesso, claro). Apareça assim na entrevista para um emprego que corresponde a suas qualificações e veja o resultado.
Pois é, a Assembléia Estadual da Califórnia, EUA, baseando-se nos mesmos princípios da Constituição brasileira, acaba de aprovar e submeter ao Senado uma lei segundo a qual será multado em até US$ 150 mil (R$ 435 mil) o empregador que discriminar transexuais, travestis ou "cross-dressers" (literalmente: aqueles que se vestem atravessando a fronteira entre os sexos).
Você se lembra de "Meninos Não Choram"? O filme contava a história real da jovem Teena Brandon, que viveu como homem e foi estuprada e assassinada por seus "amigos" quando estes descobriram que seu sexo biológico era feminino. O filme estreou em 2000 e, pouco depois, o Estado de Minnesota e vários municípios americanos instituíram leis de proteção a transexuais e travestis.
A lei de Minnesota e o projeto californiano são parecidos. Proíbem a discriminação por razões de gênero e definem o gênero como "identidade, aparência ou comportamento" que podem ser diferentes daqueles tradicionalmente associados ao sexo biológico do sujeito.
Vários homens e mulheres vivem (constante ou ocasionalmente) uma discordância entre seu sexo biológico e sua identidade. São de sexo masculino e se sentem de gênero feminino ou vice-versa. Cuidado: essa distância entre sexo e gênero não é uma preferência sexual, mas um conflito subjetivo no qual o corpo é vivido como estranho. Um homem que tem o sentimento de pertencer ao gênero feminino não é necessariamente homossexual. Inversamente, é famoso, na clínica, o caso de uma mulher que, nas entrevistas necessárias para que fosse aprovada sua operação de mudança de sexo, declarou aos psiquiatras que, sexualmente, gostava de homens. Réplica: então por que mudar de sexo? Não lhe seria mais fácil encontrar os parceiros desejados permanecendo mulher? Ela respondeu que queria ser homem porque se sentia homem. Certo, ela imaginava que, sexualmente, continuaria preferindo os homens. Seria, portanto, depois da operação, um homem homossexual.
O divórcio entre sexo e gênero se apresenta num leque diversificado. Há o transexual decidido a transformar a anatomia de seu corpo. E há o pai de família que, às escondidas, usa roupa íntima feminina. Entre os dois, estão os sujeitos que recorrem a modificações corporais "leves" (depilações, hormônios, silicone).
Ora, essas experiências distintas, que pressupõem personalidades radicalmente díspares, nos parecem todas indecentes. Por quê?
Os opositores da lei californiana argumentam: o dono de uma loja de artigos religiosos será obrigado a empregar travestis. Se a recepcionista da Sociedade Bíblica fosse Danny DeVito de minissaia, isso seria inconciliável com o decoro do estabelecimento.
Podemos simpatizar, mas pergunto: por que um senhor gordinho de minissaia é mais indecente do que, por exemplo, uma jovem anoréxica? Afinal, ambos sofrem de maneira análoga: não concordam com seu corpo. O senhor gordinho discorda de seu sexo, a anoréxica discorda de seu peso.
Eis a questão, rebateriam os opositores da lei: o senhor gordinho tem um problema não de peso, mas de sexo. Errado: na verdade, ele sofre de transtornos de identidade. É para nós que seus esforços para modificar o corpo têm uma significação sexual. Já que não entendemos a separação entre sexo e gênero da qual ele sofre, supomos que ele queira sobretudo gozar em dobro, como homem e como mulher. Aos nossos olhos, ele é um sujeito comandado por uma exigência sexual descomunal: um tarado.
Pouco importa que muitos travestis vivam quase castos, encontrando seu prazer em discretas emoções indumentárias. Nosso estereótipo do travesti implica uma sexualidade descontrolada. E invocamos, como prova, a presença maciça de "bonecas" prostituídas nas ruas. É um argumento hipócrita: a prostituição é uma das poucas soluções oferecidas a quem quer viver uma vida travestida. Aliás, é isso que a lei californiana pretende mudar.
Mas vai ser difícil aprender a conviver com o travesti. Pois nosso olhar o erige em representante genérico de uma sexualidade exacerbada que excita a fantasia de todos.
Um anúncio de acompanhantes especiais, na televisão americana, mostra corpos femininos dotados de pênis. Uma voz em off comenta: "O que é você? Um "ele" ou uma "ela'? Não sei, mas você é certamente feito/a para o sexo".
Em suma, para que a lei californiana "pegue", quem vai colocar dificuldade não são os travestis atrás do Jockey Club, mas seus clientes.
08 maio 2003
Sexo na terceira idade
Anos atrás, fui consultado pelos filhos de um senhor de 84 anos, viúvo e parcialmente inválido. Estavam preocupados com a saúde mental do pai. Não que o octogenário fosse confuso ou delirante. Nada disso. Mas, segundo os filhos (dois homens e uma mulher, todos acima dos 40), seu comportamento era grotesco: não condizia com a idade.
Logo após a morte da esposa, o homem ficara prostrado. Revelara-se necessária uma enfermeira que lhe fizesse companhia durante o dia. Entre o octogenário e a enfermeira (de 30 anos) criara-se uma cumplicidade. Os filhos não sabiam se os dois tinham relações sexuais, mas ocorria o seguinte: a pedido do octogenário, a enfermeira aspergia-se copiosamente do perfume que a esposa usara durante anos e desfilava as roupas da morta (vestidos, lingerie, sapatos). Regularmente, os filhos encontravam o pai na cama, agarrado em alguma peça do vestuário desfilado, extasiado.
Claro, eles receavam que a enfermeira, além de ser modelo de passarela, fosse também trapaceira. Mas, dinheiro à parte, ficavam sobretudo enojados com a conduta do pai. O velho tornara-se obsceno, indecente: será que um psicanalista poderia falar com ele e acalmá-lo um pouco?
Eu achava o octogenário inventivo. Por que privá-lo de uma encenação em que ele encontrava prazer e conseguia manter vivo o apetite sexual sem trair a lembrança da mulher morta?
Preferi questionar os filhos. E descobri três razões básicas (e contraditórias) pelas quais o sexo dos idosos pode ser um escândalo.
1) Ser adultos, para nós, significa separarmo-nos do lar dos pais, estabelecer nossa independência. Mas a coisa não é simples: a prática da herança nos cai bem, e precisamos da proteção dos mais velhos durante um bom tempo, já que, ao nascer, não sabemos nem caminhar. Os pais, em suma, nunca poderão se tornar outros quaisquer. Para além da gratidão e do carinho devidos e merecidos, eles serão sempre, para nós, muito mais rivais do que os outros. Pois, no caso deles, a rivalidade é exacerbada pela lembrança da submissão passada: você me teve nas mãos, mas agora é minha vez, sai da frente e pára de gozar.
2) Conhecemos a idéia freudiana do complexo de Édipo. Sumariamente: em algum momento da infância, o menino tem uma paixão pela mãe e considera o pai um concorrente amoroso; a menina prefere o pai e rivaliza com a mãe. Nessa situação, às vezes, as crianças ciumentas rejeitam a idéia de que os pais tenham uma vida sexual juntos. E é possível que o mesmo ciúme continue durante nossa vida adulta.
Mas há mais: imaginar que os pais não tenham vida sexual não é apenas uma maneira de querê-los só para nós. Acontece também que, com o tempo, constatamos que os prazeres lúbricos acarretam atribulações. Rejeitar ou impedir a vida sexual dos "velhos" torna-se uma maneira de protegê-los dos transtornos inevitáveis do sexo. O velho pai ou a velha mãe são chamados por nós a ocupar um lugar mítico de sábios, entre a múmia de Lênin e o oráculo de Delfos. E o sábio ideal não deve ser atormentado por paixões, sob pena de nos parecer frustrado e imperfeito como a gente. Idealizamos os velhos como idealizamos as crianças: a ambos recusamos a sexualidade para que satisfaçam nossos estereótipos de sabedoria quase zen (para os velhos) e de inocência feliz (para as crianças).
3) Somos narcisistas: ser desejáveis nos parece tão importante quanto transar concretamente. Passear os abdominais sarados pela praia é menos arriscado que se debater na cama com um outro. Afinal, sabemos botoxar, lipoaspirar e proteinizar os corpos, mas não as relações. Benefício nada secundário: cuidando de nossa imagem desejável, podemos esquecer nossos desejos e nossas fantasias sexuais, que são, às vezes, incômodos e inquietantes.
Ora, a sexualidade da terceira idade demonstra que corpos diferentes do molde estabelecido são atravessados por desejos e prazeres: a paixão e o sexo funcionam mesmo quando as mãos se perdem em dobras inoportunas de carne e pele. Surge, portanto, uma dúvida: será que o interesse dominante pela beleza (e pela conformidade) dos corpos é um jeito de reprimir desejos e fantasias sexuais? A sexualidade dos idosos nos indigna porque sugere que nosso incurável narcisismo é um amparo contra a própria sexualidade.
Essas reflexões são evocadas por um livro corajoso que chega às livrarias americanas nesta semana: "A Round-Heeled Woman: My Late-Life Adventures in Sex and Romance" (uma mulher fácil: minhas aventuras tardias, sexuais e amorosas). A autora é Jane Juska, uma educadora, hoje com 70 anos, divorciada há décadas, que, em 1999, colocou o seguinte anúncio na "New York Review of Books": "Antes de cumprir 67 anos -em março que vem- quero fazer bastante sexo com um homem de quem eu goste. Se quiser conversar primeiro, Trollope é meu escritor preferido". Recebeu dezenas de respostas e agora narra suas intensas aventuras com uma série de homens entre 32 e 82 anos de idade.
O filho, que tem 38 anos, aprova, mas declara que não lerá o livro.
Logo após a morte da esposa, o homem ficara prostrado. Revelara-se necessária uma enfermeira que lhe fizesse companhia durante o dia. Entre o octogenário e a enfermeira (de 30 anos) criara-se uma cumplicidade. Os filhos não sabiam se os dois tinham relações sexuais, mas ocorria o seguinte: a pedido do octogenário, a enfermeira aspergia-se copiosamente do perfume que a esposa usara durante anos e desfilava as roupas da morta (vestidos, lingerie, sapatos). Regularmente, os filhos encontravam o pai na cama, agarrado em alguma peça do vestuário desfilado, extasiado.
Claro, eles receavam que a enfermeira, além de ser modelo de passarela, fosse também trapaceira. Mas, dinheiro à parte, ficavam sobretudo enojados com a conduta do pai. O velho tornara-se obsceno, indecente: será que um psicanalista poderia falar com ele e acalmá-lo um pouco?
Eu achava o octogenário inventivo. Por que privá-lo de uma encenação em que ele encontrava prazer e conseguia manter vivo o apetite sexual sem trair a lembrança da mulher morta?
Preferi questionar os filhos. E descobri três razões básicas (e contraditórias) pelas quais o sexo dos idosos pode ser um escândalo.
1) Ser adultos, para nós, significa separarmo-nos do lar dos pais, estabelecer nossa independência. Mas a coisa não é simples: a prática da herança nos cai bem, e precisamos da proteção dos mais velhos durante um bom tempo, já que, ao nascer, não sabemos nem caminhar. Os pais, em suma, nunca poderão se tornar outros quaisquer. Para além da gratidão e do carinho devidos e merecidos, eles serão sempre, para nós, muito mais rivais do que os outros. Pois, no caso deles, a rivalidade é exacerbada pela lembrança da submissão passada: você me teve nas mãos, mas agora é minha vez, sai da frente e pára de gozar.
2) Conhecemos a idéia freudiana do complexo de Édipo. Sumariamente: em algum momento da infância, o menino tem uma paixão pela mãe e considera o pai um concorrente amoroso; a menina prefere o pai e rivaliza com a mãe. Nessa situação, às vezes, as crianças ciumentas rejeitam a idéia de que os pais tenham uma vida sexual juntos. E é possível que o mesmo ciúme continue durante nossa vida adulta.
Mas há mais: imaginar que os pais não tenham vida sexual não é apenas uma maneira de querê-los só para nós. Acontece também que, com o tempo, constatamos que os prazeres lúbricos acarretam atribulações. Rejeitar ou impedir a vida sexual dos "velhos" torna-se uma maneira de protegê-los dos transtornos inevitáveis do sexo. O velho pai ou a velha mãe são chamados por nós a ocupar um lugar mítico de sábios, entre a múmia de Lênin e o oráculo de Delfos. E o sábio ideal não deve ser atormentado por paixões, sob pena de nos parecer frustrado e imperfeito como a gente. Idealizamos os velhos como idealizamos as crianças: a ambos recusamos a sexualidade para que satisfaçam nossos estereótipos de sabedoria quase zen (para os velhos) e de inocência feliz (para as crianças).
3) Somos narcisistas: ser desejáveis nos parece tão importante quanto transar concretamente. Passear os abdominais sarados pela praia é menos arriscado que se debater na cama com um outro. Afinal, sabemos botoxar, lipoaspirar e proteinizar os corpos, mas não as relações. Benefício nada secundário: cuidando de nossa imagem desejável, podemos esquecer nossos desejos e nossas fantasias sexuais, que são, às vezes, incômodos e inquietantes.
Ora, a sexualidade da terceira idade demonstra que corpos diferentes do molde estabelecido são atravessados por desejos e prazeres: a paixão e o sexo funcionam mesmo quando as mãos se perdem em dobras inoportunas de carne e pele. Surge, portanto, uma dúvida: será que o interesse dominante pela beleza (e pela conformidade) dos corpos é um jeito de reprimir desejos e fantasias sexuais? A sexualidade dos idosos nos indigna porque sugere que nosso incurável narcisismo é um amparo contra a própria sexualidade.
Essas reflexões são evocadas por um livro corajoso que chega às livrarias americanas nesta semana: "A Round-Heeled Woman: My Late-Life Adventures in Sex and Romance" (uma mulher fácil: minhas aventuras tardias, sexuais e amorosas). A autora é Jane Juska, uma educadora, hoje com 70 anos, divorciada há décadas, que, em 1999, colocou o seguinte anúncio na "New York Review of Books": "Antes de cumprir 67 anos -em março que vem- quero fazer bastante sexo com um homem de quem eu goste. Se quiser conversar primeiro, Trollope é meu escritor preferido". Recebeu dezenas de respostas e agora narra suas intensas aventuras com uma série de homens entre 32 e 82 anos de idade.
O filho, que tem 38 anos, aprova, mas declara que não lerá o livro.
01 maio 2003
No Museu de Bagdá com Ali Ismail
O Iraque estende-se sobre as terras da antiga Mesopotâmia. A 370 quilômetros ao sul de Bagdá, situam-se as ruínas da cidade de Ur, velhas de 4.000 anos. É provável que, na Mesopotâmia, os homens tenham pela primeira vez inventado a escrita, instituído leis, observado as estrelas e mesmo criado a bateria elétrica bem antes de Alessandro Volta. "Ur" é, em alemão, o prefixo que designa o que é originário na história.
Quando, na invasão de Bagdá, foi saqueado o Museu Nacional do Iraque, a dor e a consternação foram brutais pelo mundo afora: perdeu-se uma herança comum da humanidade. Mas o que é, para nós, uma herança?
Tudo leva a crer que, em sua maioria, os saqueadores agissem por conta de terceiros capazes de comercializar o butim. Suspeita-se que algumas peças já tenham sido leiloadas no site de E-bay. Outras devem estar nos cofres de mercadores europeus, americanos e asiáticos, à espera de que o mundo esqueça e a venda se torne menos arriscada.
Com isso, o saque do Museu de Bagdá parecia encenar nossa relação banal com o passado. Eis como.
Os museus são uma invenção moderna; nasceram durante a Revolução Francesa. Os parisienses arrebentavam as casas dos nobres e se serviam de bens, mobiliário e objetos. O quebra-quebra era um jeito de decretar que acabara o tempo dos privilégios. A Assembléia Nacional debateu durante meses para chegar à conclusão de que os restos do antigo regime deviam ser considerados patrimônio da nação. Seriam, portanto, reunidos e instalados em museus que todos visitariam, preservando agradavelmente a lembrança dos tempos anteriores.
A questão em debate era a seguinte: será que fazia sentido preservar o passado, uma vez que estava começando uma nova era em que os sujeitos não seriam mais julgados por sua origem, mas por suas capacidades e potencialidades? Não seria lógico destruir os vestígios de épocas injustas para começar do zero? Prevaleceu o partido segundo o qual era bom conservar os restos do passado iníquo e transformá-los em memórias coletivas.
Dessa escolha nasceram os museus e, logo depois, a decisão de preservar os monumentos históricos. Na mesma época, na Europa inteira, vingou o interesse pela história.
A justificativa inicial era: lembre-se para não repetir. Não deu muito certo, pois nunca paramos de repetir o pior. Na verdade, suspeito que nosso gosto pelos resíduos do passado não seja (nunca tenha sido) pedagógico. Por que nos importa a história? Por que deambulamos pelos museus?
Acreditamos que os homens devam afirmar-se segundo suas habilidades. Não queremos que o passado decida nosso destino: o que nos importa, em princípio, é o futuro. "Não me fale de suas gestas de ontem, diga-me o que sabe fazer." Se inventamos a arqueologia, a história, o museu, a restauração e a conservação das antiguidades, não é para aprender uma lição. A razão dessa nossa paixão é o caráter incompleto da revolução moderna: o futuro é um terreno demasiado inquietante e incerto para aceitarmos que só ele nos defina, portanto o passado assombra nossos dias. Não conseguimos esquecer: proclamamos a liberdade dos espíritos, mas cultivamos antigos preconceitos de raça, cultura e classe. Ou então nos dizemos autônomos, mas explicamos nossos atos pelos eventos de nossa infância ou pelo legado de nossos pais.
Em suma, passamos as tardes de domingo no mercadinho embaixo do Masp, mas inventamos a expressão "objetos de museu" para designar bibelôs sem relevância para o nosso presente. E concebemos o valor simbólico do passado sob a única forma que parecemos entender: como valor venal.
Sinistra astúcia da história em Bagdá: a herança da civilização mesopotâmica foi transformada em mercadoria tanto pela ganância dos que encomendaram o saque como pela negligência dos americanos (para quem proteger o museu não foi prioridade nenhuma). "Sucesso" da modernidade: o passado tornou-se um perfeito instrumento do futuro, pois serviu apenas para que alguns fizessem fortuna.
Mas não é o caso de deixar-se levar pela nostalgia dos tempos em que o passado contava. Considere uma outra imagem da guerra: o pequeno Ali Ismail Abbas, os braços amputados, o corpo queimado, os olhos arregalados por uma dor sem fundo. Você sacrificaria os artefatos de todos os museus do mundo para que Ali Ismail ainda estivesse brincando alegre com seus amigos? Claro que sim.
Ora, cuidado, essa resposta não é "natural". Numa cultura diferente da nossa, os restos do passado poderiam parecer bem mais importantes do que uma vida. Talvez um homem do antigo regime nos dissesse que, sem presença do passado, não haveria sociedade nem sujeitos. Talvez, para ele, a promessa de futuro contida no sorriso de um menino valesse menos do que os artefatos que sustentam a memória de um povo.
Por uma vez, podemos simpatizar com nosso individualismo: afinal, escolhemos Ali Ismail porque acreditamos na vida do indivíduo acima de qualquer necessidade coletiva, acima também dos ornamentos e dos restos do passado.
Quando, na invasão de Bagdá, foi saqueado o Museu Nacional do Iraque, a dor e a consternação foram brutais pelo mundo afora: perdeu-se uma herança comum da humanidade. Mas o que é, para nós, uma herança?
Tudo leva a crer que, em sua maioria, os saqueadores agissem por conta de terceiros capazes de comercializar o butim. Suspeita-se que algumas peças já tenham sido leiloadas no site de E-bay. Outras devem estar nos cofres de mercadores europeus, americanos e asiáticos, à espera de que o mundo esqueça e a venda se torne menos arriscada.
Com isso, o saque do Museu de Bagdá parecia encenar nossa relação banal com o passado. Eis como.
Os museus são uma invenção moderna; nasceram durante a Revolução Francesa. Os parisienses arrebentavam as casas dos nobres e se serviam de bens, mobiliário e objetos. O quebra-quebra era um jeito de decretar que acabara o tempo dos privilégios. A Assembléia Nacional debateu durante meses para chegar à conclusão de que os restos do antigo regime deviam ser considerados patrimônio da nação. Seriam, portanto, reunidos e instalados em museus que todos visitariam, preservando agradavelmente a lembrança dos tempos anteriores.
A questão em debate era a seguinte: será que fazia sentido preservar o passado, uma vez que estava começando uma nova era em que os sujeitos não seriam mais julgados por sua origem, mas por suas capacidades e potencialidades? Não seria lógico destruir os vestígios de épocas injustas para começar do zero? Prevaleceu o partido segundo o qual era bom conservar os restos do passado iníquo e transformá-los em memórias coletivas.
Dessa escolha nasceram os museus e, logo depois, a decisão de preservar os monumentos históricos. Na mesma época, na Europa inteira, vingou o interesse pela história.
A justificativa inicial era: lembre-se para não repetir. Não deu muito certo, pois nunca paramos de repetir o pior. Na verdade, suspeito que nosso gosto pelos resíduos do passado não seja (nunca tenha sido) pedagógico. Por que nos importa a história? Por que deambulamos pelos museus?
Acreditamos que os homens devam afirmar-se segundo suas habilidades. Não queremos que o passado decida nosso destino: o que nos importa, em princípio, é o futuro. "Não me fale de suas gestas de ontem, diga-me o que sabe fazer." Se inventamos a arqueologia, a história, o museu, a restauração e a conservação das antiguidades, não é para aprender uma lição. A razão dessa nossa paixão é o caráter incompleto da revolução moderna: o futuro é um terreno demasiado inquietante e incerto para aceitarmos que só ele nos defina, portanto o passado assombra nossos dias. Não conseguimos esquecer: proclamamos a liberdade dos espíritos, mas cultivamos antigos preconceitos de raça, cultura e classe. Ou então nos dizemos autônomos, mas explicamos nossos atos pelos eventos de nossa infância ou pelo legado de nossos pais.
Em suma, passamos as tardes de domingo no mercadinho embaixo do Masp, mas inventamos a expressão "objetos de museu" para designar bibelôs sem relevância para o nosso presente. E concebemos o valor simbólico do passado sob a única forma que parecemos entender: como valor venal.
Sinistra astúcia da história em Bagdá: a herança da civilização mesopotâmica foi transformada em mercadoria tanto pela ganância dos que encomendaram o saque como pela negligência dos americanos (para quem proteger o museu não foi prioridade nenhuma). "Sucesso" da modernidade: o passado tornou-se um perfeito instrumento do futuro, pois serviu apenas para que alguns fizessem fortuna.
Mas não é o caso de deixar-se levar pela nostalgia dos tempos em que o passado contava. Considere uma outra imagem da guerra: o pequeno Ali Ismail Abbas, os braços amputados, o corpo queimado, os olhos arregalados por uma dor sem fundo. Você sacrificaria os artefatos de todos os museus do mundo para que Ali Ismail ainda estivesse brincando alegre com seus amigos? Claro que sim.
Ora, cuidado, essa resposta não é "natural". Numa cultura diferente da nossa, os restos do passado poderiam parecer bem mais importantes do que uma vida. Talvez um homem do antigo regime nos dissesse que, sem presença do passado, não haveria sociedade nem sujeitos. Talvez, para ele, a promessa de futuro contida no sorriso de um menino valesse menos do que os artefatos que sustentam a memória de um povo.
Por uma vez, podemos simpatizar com nosso individualismo: afinal, escolhemos Ali Ismail porque acreditamos na vida do indivíduo acima de qualquer necessidade coletiva, acima também dos ornamentos e dos restos do passado.
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