Exatamente 40 anos atrás, em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King Jr. pronunciou seu discurso mais famoso, "Eu Tive um Sonho", em que imaginava um mundo sem segregação racial.
Nestes dias, numa Corte Federal de Chicago, Illinois, EUA, uma dúzia de americanos de origem africana, descendentes de escravos, pedem reparação a algumas grandes companhias que, no século 19, lucraram com a escravatura. Trata-se de empresas que se serviram de trabalho escravo, financiaram outras que empregavam escravos ou faziam seguros para navios negreiros.
Como compensação, é pedido que elas reconheçam publicamente sua culpa e criem um fundo que proporcione e administre serviços de saúde, moradia e educação para a população afro-americana.
Deixando os argumentos legais aos advogados, como situar-se nessa história?
Um exemplo mencionado pelo "Boston Globe" de domingo passado: Hannah Hurdle Toomey, 71, do Estado de Illinois, narra que seu pai, Andrew Hurdle (morto em 1935), aos dez anos de idade, foi leiloado a um fazendeiro do Texas.
De fato, muitos afro-americanos contam um escravo ou uma escrava entre seus ascendentes próximos, a três gerações de distância. A coisa não pode ser diferente para os afro-brasileiros. Em suma, o dano da escravatura não é muito remoto. Faz sentido pensar que ele ainda acarrete efeitos na vida dos descendentes que hoje exigem reparação.
Além disso, tenho uma simpatia imediata por qualquer movimento que proponha ampliar os limites habituais da responsabilidade jurídica e moral.
Acho divertido (e violentamente subversivo) o projeto dos anárquicos americanos e canadenses que querem abolir a responsabilidade limitada, de forma que os acionistas de uma empresa sejam civil e penalmente responsáveis pelos atos da companhia da qual adquirem uma parte, por mínima que seja. Revolução moral: na hora de comprar ações, antes de consultar perspectivas e resultados financeiros, seria preciso debruçar-se sobre as consequências jurídicas das operações das empresas nas quais investimos nossa poupança.
Da mesma forma, acharia ótimo que quem roubasse dinheiro público respondesse, por exemplo, pelo homicídio culposo dos doentes e dos acidentados que seriam salvos caso a assistência sanitária dispusesse de meios melhores.
Em suma, simpatizo com a queixa de Chicago.
Ao mesmo tempo, impõe-se uma dupla constatação.
1) Encontro cada vez mais sujeitos que se proclamam injustiçados ou injustiçadas. Eles não inventam nada, alguma injustiça lhes foi feita mesmo: um sócio os arruinou, um cônjuge os traiu e abandonou, um pai os seviciou. O que distingue esses sujeitos não é o caráter excepcional dos maus-tratos que sofreram, mas o fato de que se definem pela injustiça da qual foram vítimas: nada os interessa, nada os mobiliza que não possa ser contabilizado como ressarcimento de perdas do passado.
Paradoxo: só pedem compensação, mas declaram que não há compensação que possa abolir o dano sofrido. Claro, se pudessem ser indenizados, deveriam mudar radicalmente seu jeito de ser, e ninguém gosta de abandonar sua neurose.
Os injustiçados são, desse ponto de vista, perfeitamente adequados aos tempos, ou seja, ao espírito da sociedade de consumo: na forma de dano irreparável, eles cultivam uma insatisfação que nada é capaz de esgotar, mas não param de acreditar que algum bem possa um dia compensar adequadamente suas perdas.
Quando aluga um amigo ou um terapeuta, o injustiçado encontra, geralmente, dois tipos de resposta. Um interlocutor pode tentar convencê-lo de que a falta (no caso, a injustiça sofrida) é, por assim dizer, originária, constitutiva do ser humano e da ordem do mundo: nada contrabalançará seu dano, mostre sua maturidade pela aceitação. Outro interlocutor o exorta a ir em frente: não pode recuperar sua fortuna ou a juventude sacrificada a quem não o amava? Pois é, coloque o pé no acelerador, toque uma música legal, esqueça o dano e console-se com o que vier.
Claro, nada funciona: a neurose do espírito dos tempos exige os dois termos, falha irreparável e espera de que algo compense.
2) Os movimentos que, desde os anos 60, vêm mudando a cara de nossa sociedade adotam frequentemente, nas últimas duas décadas, o estilo dos injustiçados: enveredam pela contabilidade impossível das reparações.
Não conheço os cidadãos que promovem a queixa de Chicago. Não sei se eles se percebem como injustiçados no sentido que especifiquei.
Mas penso no gesto de Rosa Parks, a costureira negra que, num dia de 1955, em Montgomery, Alabama, sentou-se nas fileiras do ônibus reservadas aos brancos e não quis mais se mexer. Ela não pedia compensação por danos sofridos nem, a bem dizer, lutava por um futuro diferente. A repercussão de seu ato (que iniciou o movimento americano dos direitos civis e convocou o jovem Martin Luther King para a luta) deve-se, provavelmente, ao fato seguinte: Rosa Parks não cobrou créditos passados nem futuros, apenas revoltou-se, ou seja, autorizou-se a viver o presente que queria e que lhe parecia justo. Com isso, transformou sua vida e o mundo.
28 agosto 2003
21 agosto 2003
O casamento gay e a volta da intolerância
No fim de julho, o papa exortou os políticos católicos a combater qualquer lei que legalize a união de casais homossexuais. Os não-católicos, ele acrescentou, deveriam pegar carona com a Igreja de Roma para defender a "lei moral natural".
Quase simultaneamente, o presidente Bush declarou que casamento deve ser entre homem e mulher, embora lembrando que é preciso respeitar as escolhas amorosas de todos. Ele expressava assim a contradição de seu eleitorado, que é cristão e conservador, mas que é também americano, ou seja, não gosta que o Estado se meta na vida privada dos cidadãos.
Na semana seguinte, a Igreja Episcopal enfrentou uma ameaça de cisma ao aprovar a nomeação de um bispo assumidamente homossexual.
Eu imaginava que esses eventos despertariam debates adormecidos sobre a existência ou não de princípios morais "naturais", sobre o caráter laico do Estado etc. Aprestava-me a participar quando, no começo de agosto, foram publicados os resultados surpreendentes de uma pesquisa de opinião do instituto Gallup.
Resumindo: entre os americanos, houve um repentino declínio da aprovação da "agenda gay". Em maio passado, 60% dos americanos pensavam que as relações homossexuais deveriam ser legais; hoje, só 48% pensam assim. Desde 1997, uma maioria (crescente) de americanos afirmava que ser gay é "um estilo de vida aceitável". Hoje essa é a opinião de uma minoria. A queda não vale apenas para as fileiras conservadoras: quase um quarto dos democratas favoráveis à união civil gay mudou de opinião. O que aconteceu?
Primeira explicação: a idéia do casamento gay produz uma resistência particular. Por quê? O americano médio divorcia-se sem muita hesitação, mas, paradoxalmente, mais de 80% dos casais americanos confirmam sua união numa cerimônia religiosa. Ou seja, os casamentos acontecem e quebram-se segundo as variações das paixões e dos desejos, mas ninguém admite. Quase todos preferem continuar concebendo o casamento como sacramento eterno, orientado pelo projeto de criar filhos. Nesse contexto, a idéia do casamento gay (que é sempre efeito de uma escolha afetiva) é incômoda, pois desvenda uma verdade que vale para quase todos os casamentos modernos: eles são instáveis não por acidente, mas por essência, por serem cimentados mais pela precariedade dos sentimentos que por compromissos solenes e procriativos diante de Deus.
Segunda explicação. Nos últimos tempos, o estilo de vida gay triunfou na cultura popular americana. O canal de televisão a cabo Bravo propõe, com grande sucesso, o show "Queer Eye for a Straight Guy" (olhar homo para um cara hétero). A cada semana, cinco gays reorganizam a vida de um heterossexual: arrumam sua casa, sua aparência física, suas escolhas de indumentária, suas maneiras, ensinando-lhe "estilo, bom gosto e classe". Os gays se tornaram alvos privilegiados e explícitos de muitas propagandas por serem, em média, segundo as pesquisas de mercado, consumidores mais abastados e mais requintados que os heterossexuais. Quando a mídia recenseia a vida noturna e os prazeres do momento, as boates e os clubes gays lotam regularmente os primeiros lugares das listas.
Em suma, o universo gay está se tornando, na cultura popular, um ideal de hedonismo bem-sucedido: "Eles, sim, têm uma vida boa". Subentendido: não a gente. Quando, numa proposição que habita a mente do homem da rua, o sujeito é uma terceira pessoa do plural ("eles"), a paranóia nunca está longe.
É fácil objetar que há uma grande distância entre o ideal da vida gay, que assombra a cabeça dos heterossexuais, e a realidade do universo gay, que não é tão gaio assim. Além disso, o dito estilo de vida gay concerne a uma minoria de homossexuais, que talvez sejam fascinados pela imagem que lhes é proposta, como um espelho, pelos heterossexuais que os idealizam.
Mas não adianta objetar: há uma razão de fundo que alimenta a idealização coletiva do universo gay. Os homossexuais, reprimidos por causa de suas práticas sexuais, só puderam reivindicar respeito e liberdade constituindo-se como grupo definido por sua sexualidade sufocada.
Consequência: eles são o único grupo social que deve sua consistência a uma modalidade comum de desejo sexual. A coesão feminista das mulheres, por exemplo, é decidida pelo sexo biológico e pela discriminação comum no trabalho e na vida de família, não por uma preferência sexual. Travestis e transexuais se definem como grupos a partir da experiência comum de um desacordo entre seu sexo biológico e seu gênero, não por uma preferência sexual.
Por isso, por serem o único grupo social definido pela forma de seus prazeres, os homossexuais encarnam facilmente, aos olhos dos "normais", um ideal genérico de prazer sexual: "eles" ("à diferença de nós") ousam e sabem gozar.
É um privilégio duvidoso. Afinal, na Europa de 70 anos atrás, os judeus eram aqueles que, "à diferença da gente", ousavam e sabiam fazer dinheiro, não é?
Quem é idealizado por saber pretensamente, de uma forma ou de outra, aproveitar a vida, mais cedo ou mais tarde, acaba sendo apontado como o responsável por nossas privações. A lógica corre assim: eles sabem gozar, eles têm o prazer que não tenho, eles me privam. A idealização do gozo dos outros é, frequentemente, a antecâmara do ódio e da perseguição.
Escuto, nestes dias, aqui no Brasil, vozes pretensamente liberais contra o casamento gay. Comentam: "Eles querem casar? Mas que coisa mais careta! A gente esperava deles que fossem os porta-bandeiras da revolução sexual". É um jeito velado de dizer: já gozam mais que a gente, agora vão apoderar-se também dos modestos prazeres do lar, os únicos que nos sobram?
14 agosto 2003
Paulinho da Viola e nosso uso do tempo
Estreou na semana passada, em São Paulo, "Paulinho da Viola: Meu Tempo É Hoje", documentário com direção de Izabel Jaguaribe e roteiro de Zuenir Ventura. O filme é um encanto.
Claro, Paulinho da Viola é contagiante: basta que comece a tocar e a cantar uma de suas músicas para que sejamos tomados pela vontade de sentar na roda com a Velha-Guarda da Portela.
Mas não é só isso: Zuenir Ventura conseguiu um pequeno prodígio. Inventou um roteiro em que a fala é escassa e são poucos os momentos em que assistimos às andanças de Paulinho pela vida (seu aniversário, alguns encontros, seus hobbies, seu passear pelas ruas). Em suma, Zuenir deixou Paulinho cantar e, apesar disso (ou talvez graças a isso), ele nos oferece, com "Paulinho da Viola", uma meditação sobre nosso uso do tempo.
Um conhecido, antes de assistir ao filme, comentou assim a frase do título "Meu Tempo É Hoje": "O Paulinho é grande, mas não entendo direito por que seu tempo seria hoje. Saiu um CD dele recentemente?". Até então não me ocorrera que o título pudesse ser entendido como uma declaração triunfalista, do tipo "cheguei ao meu auge, agora é minha vez, meu momento". Esse equívoco (pouco importa que fosse previsto ou não por Zuenir e Izabel) é providencial: ele ilustra a distância entre a experiência do tempo que é comum na modernidade e a proposta de "Paulinho da Viola" (e de Paulinho sem aspas).
Na experiência moderna do tempo (e no mal-entendido de meu conhecido), o título significaria que o presente vale, por exemplo, como ponto culiminante de uma história de sucesso. Nessa ótica, o instante atual é sempre apenas uma etapa: ele deve sua relevância ao que vem antes e ao que vem depois.
Ora, no filme, o título sugere, ao contrário, que é possível e importa viver a vida no presente. "Meu Tempo É Hoje" significa "vivo agora", ou seja, estou no que eu faço.
A experiência moderna banal apaga o presente. Vivemos, geralmente, em trânsito entre um passado que é objeto de saudade (ou, pior, que vale como currículo para confirmar nossas potencialidades futuras) e um anseio pelos dias melhores que virão. O presente não tem, em nossa cultura, uma dignidade própria; ele é a fração de segundo em que o atleta de salto triplo pisa na areia para impulsionar-se e pular mais longe.
Paulinho, ao contrário, repete que ele não tem saudade: o passado está dentro dele. As lembranças não servem para lamentar perdas ou para alimentar sonhos: são o patrimônio que enriquece a experiência que importa, a do presente.
Paulinho tem outros lazeres, além da música. Um deles é restaurar carros velhos. Decepção de sua mulher: um Karman-Ghia vermelho que já esteve quase pronto para ser dirigido fica sob uma lona poeirenta, ainda aos pedaços. Paulinho não tem pressa: seu hobby não é para passar noites em claro ou fins de semana seguidos anelando pelo momento em que, vitória final, o carro estará pronto e como novo. Seu prazer é arrumar carros velhos, não dirigi-los restaurados. O Karman-Ghia é o carro de Penélope; quem sabe Paulinho o desmonte a cada noite para remontá-lo um pouco no dia seguinte. E a comparação só valeria mesmo se Penélope tivesse desfeito sua famosa tela não para enganar os pretendentes na espera da volta do marido, mas porque ela gostava de tecer.
Outro hobby de Paulinho é reparar relógios. Não nos é estranho, pois ele aparece, no filme, como um terapeuta de nossa relação doente com o tempo, de nossa incapacidade de reconhecer qual é a hora de nossa vida.
Os documentários que têm, como é frequente, uma função de denúncia representam a face crítica de nossos sonhos, enquanto (generalizando) o cinema hollywoodiano nos seduz com devaneios de aventuras extraordinárias, distantes no espaço e no tempo. Nessa oposição entre o que deve mudar e o charme do que poderia ser, ambos os termos valem pela promessa ("escapista" ou engajada que seja) de um futuro ou de um alhures diferentes de nosso cotidiano.
Obviamente, o anseio de outra coisa é necessário para transformar o mundo. Mas talvez nenhuma mudança valha a pena se não pudermos curar uma alienação fundamental de nossa subjetividade: a incapacidade de viver no presente. O que adianta um futuro melhor se, quando ele chegar, só saberemos matutar sobre mais um tempo vindouro?
Por sorte nossa, o filme de Zuenir e Izabel não é uma ave rara. Nos últimos tempos, uma série de documentários brasileiros nos convidam a suspender o sonho e a saborear o dia. A lista (incompleta) inclui "Futebol" (1998) e "Nelson Freire" (2003), de João Moreira Salles, "Seis Histórias Brasileiras" (2000), de Arthur Fontes, João Moreira Salles e Izabel Jaguaribe (esse filme, infelizmente, como "Futebol", não passou nas salas de cinema), "Edifício Master" (2002), de Eduardo Coutinho, e agora "Paulinho da Viola".
Talvez esses filmes sejam mais revolucionários do que denúncias para transformar o mundo, pois transformam a gente, apontando a dignidade, o valor e a grandeza possíveis da vida como ela é, na hora em que ela acontece.
Claro, Paulinho da Viola é contagiante: basta que comece a tocar e a cantar uma de suas músicas para que sejamos tomados pela vontade de sentar na roda com a Velha-Guarda da Portela.
Mas não é só isso: Zuenir Ventura conseguiu um pequeno prodígio. Inventou um roteiro em que a fala é escassa e são poucos os momentos em que assistimos às andanças de Paulinho pela vida (seu aniversário, alguns encontros, seus hobbies, seu passear pelas ruas). Em suma, Zuenir deixou Paulinho cantar e, apesar disso (ou talvez graças a isso), ele nos oferece, com "Paulinho da Viola", uma meditação sobre nosso uso do tempo.
Um conhecido, antes de assistir ao filme, comentou assim a frase do título "Meu Tempo É Hoje": "O Paulinho é grande, mas não entendo direito por que seu tempo seria hoje. Saiu um CD dele recentemente?". Até então não me ocorrera que o título pudesse ser entendido como uma declaração triunfalista, do tipo "cheguei ao meu auge, agora é minha vez, meu momento". Esse equívoco (pouco importa que fosse previsto ou não por Zuenir e Izabel) é providencial: ele ilustra a distância entre a experiência do tempo que é comum na modernidade e a proposta de "Paulinho da Viola" (e de Paulinho sem aspas).
Na experiência moderna do tempo (e no mal-entendido de meu conhecido), o título significaria que o presente vale, por exemplo, como ponto culiminante de uma história de sucesso. Nessa ótica, o instante atual é sempre apenas uma etapa: ele deve sua relevância ao que vem antes e ao que vem depois.
Ora, no filme, o título sugere, ao contrário, que é possível e importa viver a vida no presente. "Meu Tempo É Hoje" significa "vivo agora", ou seja, estou no que eu faço.
A experiência moderna banal apaga o presente. Vivemos, geralmente, em trânsito entre um passado que é objeto de saudade (ou, pior, que vale como currículo para confirmar nossas potencialidades futuras) e um anseio pelos dias melhores que virão. O presente não tem, em nossa cultura, uma dignidade própria; ele é a fração de segundo em que o atleta de salto triplo pisa na areia para impulsionar-se e pular mais longe.
Paulinho, ao contrário, repete que ele não tem saudade: o passado está dentro dele. As lembranças não servem para lamentar perdas ou para alimentar sonhos: são o patrimônio que enriquece a experiência que importa, a do presente.
Paulinho tem outros lazeres, além da música. Um deles é restaurar carros velhos. Decepção de sua mulher: um Karman-Ghia vermelho que já esteve quase pronto para ser dirigido fica sob uma lona poeirenta, ainda aos pedaços. Paulinho não tem pressa: seu hobby não é para passar noites em claro ou fins de semana seguidos anelando pelo momento em que, vitória final, o carro estará pronto e como novo. Seu prazer é arrumar carros velhos, não dirigi-los restaurados. O Karman-Ghia é o carro de Penélope; quem sabe Paulinho o desmonte a cada noite para remontá-lo um pouco no dia seguinte. E a comparação só valeria mesmo se Penélope tivesse desfeito sua famosa tela não para enganar os pretendentes na espera da volta do marido, mas porque ela gostava de tecer.
Outro hobby de Paulinho é reparar relógios. Não nos é estranho, pois ele aparece, no filme, como um terapeuta de nossa relação doente com o tempo, de nossa incapacidade de reconhecer qual é a hora de nossa vida.
Os documentários que têm, como é frequente, uma função de denúncia representam a face crítica de nossos sonhos, enquanto (generalizando) o cinema hollywoodiano nos seduz com devaneios de aventuras extraordinárias, distantes no espaço e no tempo. Nessa oposição entre o que deve mudar e o charme do que poderia ser, ambos os termos valem pela promessa ("escapista" ou engajada que seja) de um futuro ou de um alhures diferentes de nosso cotidiano.
Obviamente, o anseio de outra coisa é necessário para transformar o mundo. Mas talvez nenhuma mudança valha a pena se não pudermos curar uma alienação fundamental de nossa subjetividade: a incapacidade de viver no presente. O que adianta um futuro melhor se, quando ele chegar, só saberemos matutar sobre mais um tempo vindouro?
Por sorte nossa, o filme de Zuenir e Izabel não é uma ave rara. Nos últimos tempos, uma série de documentários brasileiros nos convidam a suspender o sonho e a saborear o dia. A lista (incompleta) inclui "Futebol" (1998) e "Nelson Freire" (2003), de João Moreira Salles, "Seis Histórias Brasileiras" (2000), de Arthur Fontes, João Moreira Salles e Izabel Jaguaribe (esse filme, infelizmente, como "Futebol", não passou nas salas de cinema), "Edifício Master" (2002), de Eduardo Coutinho, e agora "Paulinho da Viola".
Talvez esses filmes sejam mais revolucionários do que denúncias para transformar o mundo, pois transformam a gente, apontando a dignidade, o valor e a grandeza possíveis da vida como ela é, na hora em que ela acontece.
07 agosto 2003
O que é um psicoterapeuta?
Volta e meia, me perguntam: "Por que pagar a um profissional, se posso conversar de graça com o pastor ou com a mãe-de-santo? Não é lógico que os amigos do peito me entendam melhor que um desconhecido? Qual é a diferença entre um psicoterapeuta e um padre que escuta, aconselha e pode nos absolver dos pecados? ".
A diferença é simples: o psicoterapeuta é formado em (alguma) psicoterapia, os outros não. Os interlocutores insistem: formado como?
Aqui, uma distinção. Algumas terapias, como as comportamentais (especialmente eficazes na cura das fobias), requerem do terapeuta que aprenda e treine exaustivamente técnicas que possam mudar a conduta que atrapalha o paciente.
Outras terapias intervêm na dinâmica das motivações conscientes ou inconscientes de quem sofre (a psicanálise é uma delas). Aqui a formação pede que o terapeuta se submeta ao mesmo processo que é proposto a seus pacientes. Mais: pede que, de alguma forma, ele permaneça sempre nesse processo. O psicanalista, por exemplo, não pára de analisar-se. É uma precaução: tenta-se evitar que interfiram nas curas motivações do terapeuta que ele mesmo ignoraria. Mas há outra razão: o entendimento das motivações dos outros é proporcional ao entendimento de nós mesmos que temos a coragem de encarar. O terapeuta é como um cirurgião que, ao operar, praticasse uma vivissecção em seu próprio corpo para reconhecer melhor os órgãos internos do paciente.
Volto às perguntas iniciais. Claro, são pequenas investidas que evocam as declarações de amor do jardim-de-infância, quando puxávamos o cabelo dos colegas para que nos dessem atenção. Essa maneira infantil de provocar ou ferir o outro para lhe oferecer e pedir amor tem futuro. Aflige o adolescente para quem decepcionar os pais é o jeito de esconder (e dizer) um afeto do qual ele se envergonha, porque confirmaria sua dependência. E há casais que vivem na guerrilha, ambos transformando sua dificuldade para demandar amor ou para ser amados num cotidiano de ataques mesquinhos.
Quase sempre a coisa começa com um drama nos primeiros anos de vida: um pai que manifesta seu cuidado só xingando ou uma mãe que acaricia com a esquerda e bate com a direita. Sobra uma incerteza nefasta: qual é a prova do amor, carinho ou chicotada (real e metafórica)?
Ora, posso ler essa interpretação banal num livro ou numa coluna de jornal. Mas só a "conheço" porque, durante anos, tentei entender como era possível que, na infância, eu acordasse pasmo e angustiado com sonhos em que era atormentado por adultos sorridentes.
Esse exemplo é benigno. Qualquer terapeuta está disposto a encontrar dentro de si inquietações mais turvas e cicatrizes mais supuradas. Pois desses encontros depende sua capacidade de escutar.
Keith Ablow é um psiquiatra e terapeuta de Boston, EUA. Escreve romances que já comentei e que deveriam ser leitura obrigatória nos cursos de psicologia clínica. O último é "Psycho-Path" (psicopata ou caminho da psique). Um dos personagens é um psiquiatra infantil, genial e enlouquecido. Um dia (a revelação deste episódio menor não estragará a leitura), ele atende um menino vítima de abusos físicos, mas decidido a não denunciar os pais. O psiquiatra consegue ganhar a confiança da criança e descobre que o abusador é a mãe, enquanto o pai assiste passivo.
Numa sessão milagrosa, ele tenta levar o pai a situar-se do lado do menino. Convencido de ter conseguido, manda a criança para casa sob os cuidados paternos. No dia seguinte, a mãe assassina o menino diante do pai, mais uma vez silencioso. O psiquiatra, como lhe grita na cara uma colega, condenou o menino por falta de vivissecção. Ele "esqueceu" que a raiz de sua própria loucura estava justamente na covardia de um pai que nunca soubera protegê-lo na infância. O menino foi ao matadouro porque o terapeuta quis emendar a tragédia de sua própria vida acreditando num final feliz para seu paciente.
Romanceado? Nem tanto. As apostas em muitas curas não são menos extremas.
Não estranha que os terapeutas (ao menos os psicanalistas, que conheço melhor) mostrem ao mundo, frequentemente, uma face de desoladora normalidade social. Ou que a história institucional da psicanálise se pareça com a crônica de um clube de notáveis de província, preocupados com o lugar que lhes é reservado no banquete anual. É uma compensação compreensível: o exercício de uma terapia dinâmica implica, para o terapeuta, um esforço que beira a insanidade mental e consiste em habitar os porões em que ele encontra suas verdades e, com elas, as verdades de seus pacientes.
PS: Meses atrás, uma igreja evangélica decidiu tornar-se escola de psicanálise e tentou promover no Congresso uma lei pela qual ela teria a autoridade nacional para outorgar o "título" de psicanalista. Fora o fato de psicanalista estar mais para rodapé que para título, é certo que um cristão pode perfeitamente ser psicanalista: pede-se apenas que ouse encarar sua fé como um dos demônios de sua história.
Mas uma igreja não pode ser uma instituição de ensino de psicoterapia, pois formar terapeutas é o exato contrário de propagar uma crença.
A diferença é simples: o psicoterapeuta é formado em (alguma) psicoterapia, os outros não. Os interlocutores insistem: formado como?
Aqui, uma distinção. Algumas terapias, como as comportamentais (especialmente eficazes na cura das fobias), requerem do terapeuta que aprenda e treine exaustivamente técnicas que possam mudar a conduta que atrapalha o paciente.
Outras terapias intervêm na dinâmica das motivações conscientes ou inconscientes de quem sofre (a psicanálise é uma delas). Aqui a formação pede que o terapeuta se submeta ao mesmo processo que é proposto a seus pacientes. Mais: pede que, de alguma forma, ele permaneça sempre nesse processo. O psicanalista, por exemplo, não pára de analisar-se. É uma precaução: tenta-se evitar que interfiram nas curas motivações do terapeuta que ele mesmo ignoraria. Mas há outra razão: o entendimento das motivações dos outros é proporcional ao entendimento de nós mesmos que temos a coragem de encarar. O terapeuta é como um cirurgião que, ao operar, praticasse uma vivissecção em seu próprio corpo para reconhecer melhor os órgãos internos do paciente.
Volto às perguntas iniciais. Claro, são pequenas investidas que evocam as declarações de amor do jardim-de-infância, quando puxávamos o cabelo dos colegas para que nos dessem atenção. Essa maneira infantil de provocar ou ferir o outro para lhe oferecer e pedir amor tem futuro. Aflige o adolescente para quem decepcionar os pais é o jeito de esconder (e dizer) um afeto do qual ele se envergonha, porque confirmaria sua dependência. E há casais que vivem na guerrilha, ambos transformando sua dificuldade para demandar amor ou para ser amados num cotidiano de ataques mesquinhos.
Quase sempre a coisa começa com um drama nos primeiros anos de vida: um pai que manifesta seu cuidado só xingando ou uma mãe que acaricia com a esquerda e bate com a direita. Sobra uma incerteza nefasta: qual é a prova do amor, carinho ou chicotada (real e metafórica)?
Ora, posso ler essa interpretação banal num livro ou numa coluna de jornal. Mas só a "conheço" porque, durante anos, tentei entender como era possível que, na infância, eu acordasse pasmo e angustiado com sonhos em que era atormentado por adultos sorridentes.
Esse exemplo é benigno. Qualquer terapeuta está disposto a encontrar dentro de si inquietações mais turvas e cicatrizes mais supuradas. Pois desses encontros depende sua capacidade de escutar.
Keith Ablow é um psiquiatra e terapeuta de Boston, EUA. Escreve romances que já comentei e que deveriam ser leitura obrigatória nos cursos de psicologia clínica. O último é "Psycho-Path" (psicopata ou caminho da psique). Um dos personagens é um psiquiatra infantil, genial e enlouquecido. Um dia (a revelação deste episódio menor não estragará a leitura), ele atende um menino vítima de abusos físicos, mas decidido a não denunciar os pais. O psiquiatra consegue ganhar a confiança da criança e descobre que o abusador é a mãe, enquanto o pai assiste passivo.
Numa sessão milagrosa, ele tenta levar o pai a situar-se do lado do menino. Convencido de ter conseguido, manda a criança para casa sob os cuidados paternos. No dia seguinte, a mãe assassina o menino diante do pai, mais uma vez silencioso. O psiquiatra, como lhe grita na cara uma colega, condenou o menino por falta de vivissecção. Ele "esqueceu" que a raiz de sua própria loucura estava justamente na covardia de um pai que nunca soubera protegê-lo na infância. O menino foi ao matadouro porque o terapeuta quis emendar a tragédia de sua própria vida acreditando num final feliz para seu paciente.
Romanceado? Nem tanto. As apostas em muitas curas não são menos extremas.
Não estranha que os terapeutas (ao menos os psicanalistas, que conheço melhor) mostrem ao mundo, frequentemente, uma face de desoladora normalidade social. Ou que a história institucional da psicanálise se pareça com a crônica de um clube de notáveis de província, preocupados com o lugar que lhes é reservado no banquete anual. É uma compensação compreensível: o exercício de uma terapia dinâmica implica, para o terapeuta, um esforço que beira a insanidade mental e consiste em habitar os porões em que ele encontra suas verdades e, com elas, as verdades de seus pacientes.
PS: Meses atrás, uma igreja evangélica decidiu tornar-se escola de psicanálise e tentou promover no Congresso uma lei pela qual ela teria a autoridade nacional para outorgar o "título" de psicanalista. Fora o fato de psicanalista estar mais para rodapé que para título, é certo que um cristão pode perfeitamente ser psicanalista: pede-se apenas que ouse encarar sua fé como um dos demônios de sua história.
Mas uma igreja não pode ser uma instituição de ensino de psicoterapia, pois formar terapeutas é o exato contrário de propagar uma crença.
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