14 agosto 2003

Paulinho da Viola e nosso uso do tempo

Estreou na semana passada, em São Paulo, "Paulinho da Viola: Meu Tempo É Hoje", documentário com direção de Izabel Jaguaribe e roteiro de Zuenir Ventura. O filme é um encanto.

Claro, Paulinho da Viola é contagiante: basta que comece a tocar e a cantar uma de suas músicas para que sejamos tomados pela vontade de sentar na roda com a Velha-Guarda da Portela.
Mas não é só isso: Zuenir Ventura conseguiu um pequeno prodígio. Inventou um roteiro em que a fala é escassa e são poucos os momentos em que assistimos às andanças de Paulinho pela vida (seu aniversário, alguns encontros, seus hobbies, seu passear pelas ruas). Em suma, Zuenir deixou Paulinho cantar e, apesar disso (ou talvez graças a isso), ele nos oferece, com "Paulinho da Viola", uma meditação sobre nosso uso do tempo.

Um conhecido, antes de assistir ao filme, comentou assim a frase do título "Meu Tempo É Hoje": "O Paulinho é grande, mas não entendo direito por que seu tempo seria hoje. Saiu um CD dele recentemente?". Até então não me ocorrera que o título pudesse ser entendido como uma declaração triunfalista, do tipo "cheguei ao meu auge, agora é minha vez, meu momento". Esse equívoco (pouco importa que fosse previsto ou não por Zuenir e Izabel) é providencial: ele ilustra a distância entre a experiência do tempo que é comum na modernidade e a proposta de "Paulinho da Viola" (e de Paulinho sem aspas).

Na experiência moderna do tempo (e no mal-entendido de meu conhecido), o título significaria que o presente vale, por exemplo, como ponto culiminante de uma história de sucesso. Nessa ótica, o instante atual é sempre apenas uma etapa: ele deve sua relevância ao que vem antes e ao que vem depois.

Ora, no filme, o título sugere, ao contrário, que é possível e importa viver a vida no presente. "Meu Tempo É Hoje" significa "vivo agora", ou seja, estou no que eu faço.

A experiência moderna banal apaga o presente. Vivemos, geralmente, em trânsito entre um passado que é objeto de saudade (ou, pior, que vale como currículo para confirmar nossas potencialidades futuras) e um anseio pelos dias melhores que virão. O presente não tem, em nossa cultura, uma dignidade própria; ele é a fração de segundo em que o atleta de salto triplo pisa na areia para impulsionar-se e pular mais longe.

Paulinho, ao contrário, repete que ele não tem saudade: o passado está dentro dele. As lembranças não servem para lamentar perdas ou para alimentar sonhos: são o patrimônio que enriquece a experiência que importa, a do presente.

Paulinho tem outros lazeres, além da música. Um deles é restaurar carros velhos. Decepção de sua mulher: um Karman-Ghia vermelho que já esteve quase pronto para ser dirigido fica sob uma lona poeirenta, ainda aos pedaços. Paulinho não tem pressa: seu hobby não é para passar noites em claro ou fins de semana seguidos anelando pelo momento em que, vitória final, o carro estará pronto e como novo. Seu prazer é arrumar carros velhos, não dirigi-los restaurados. O Karman-Ghia é o carro de Penélope; quem sabe Paulinho o desmonte a cada noite para remontá-lo um pouco no dia seguinte. E a comparação só valeria mesmo se Penélope tivesse desfeito sua famosa tela não para enganar os pretendentes na espera da volta do marido, mas porque ela gostava de tecer.

Outro hobby de Paulinho é reparar relógios. Não nos é estranho, pois ele aparece, no filme, como um terapeuta de nossa relação doente com o tempo, de nossa incapacidade de reconhecer qual é a hora de nossa vida.

Os documentários que têm, como é frequente, uma função de denúncia representam a face crítica de nossos sonhos, enquanto (generalizando) o cinema hollywoodiano nos seduz com devaneios de aventuras extraordinárias, distantes no espaço e no tempo. Nessa oposição entre o que deve mudar e o charme do que poderia ser, ambos os termos valem pela promessa ("escapista" ou engajada que seja) de um futuro ou de um alhures diferentes de nosso cotidiano.
Obviamente, o anseio de outra coisa é necessário para transformar o mundo. Mas talvez nenhuma mudança valha a pena se não pudermos curar uma alienação fundamental de nossa subjetividade: a incapacidade de viver no presente. O que adianta um futuro melhor se, quando ele chegar, só saberemos matutar sobre mais um tempo vindouro?

Por sorte nossa, o filme de Zuenir e Izabel não é uma ave rara. Nos últimos tempos, uma série de documentários brasileiros nos convidam a suspender o sonho e a saborear o dia. A lista (incompleta) inclui "Futebol" (1998) e "Nelson Freire" (2003), de João Moreira Salles, "Seis Histórias Brasileiras" (2000), de Arthur Fontes, João Moreira Salles e Izabel Jaguaribe (esse filme, infelizmente, como "Futebol", não passou nas salas de cinema), "Edifício Master" (2002), de Eduardo Coutinho, e agora "Paulinho da Viola".

Talvez esses filmes sejam mais revolucionários do que denúncias para transformar o mundo, pois transformam a gente, apontando a dignidade, o valor e a grandeza possíveis da vida como ela é, na hora em que ela acontece.

Nenhum comentário:

Postar um comentário