21 agosto 2003
O casamento gay e a volta da intolerância
No fim de julho, o papa exortou os políticos católicos a combater qualquer lei que legalize a união de casais homossexuais. Os não-católicos, ele acrescentou, deveriam pegar carona com a Igreja de Roma para defender a "lei moral natural".
Quase simultaneamente, o presidente Bush declarou que casamento deve ser entre homem e mulher, embora lembrando que é preciso respeitar as escolhas amorosas de todos. Ele expressava assim a contradição de seu eleitorado, que é cristão e conservador, mas que é também americano, ou seja, não gosta que o Estado se meta na vida privada dos cidadãos.
Na semana seguinte, a Igreja Episcopal enfrentou uma ameaça de cisma ao aprovar a nomeação de um bispo assumidamente homossexual.
Eu imaginava que esses eventos despertariam debates adormecidos sobre a existência ou não de princípios morais "naturais", sobre o caráter laico do Estado etc. Aprestava-me a participar quando, no começo de agosto, foram publicados os resultados surpreendentes de uma pesquisa de opinião do instituto Gallup.
Resumindo: entre os americanos, houve um repentino declínio da aprovação da "agenda gay". Em maio passado, 60% dos americanos pensavam que as relações homossexuais deveriam ser legais; hoje, só 48% pensam assim. Desde 1997, uma maioria (crescente) de americanos afirmava que ser gay é "um estilo de vida aceitável". Hoje essa é a opinião de uma minoria. A queda não vale apenas para as fileiras conservadoras: quase um quarto dos democratas favoráveis à união civil gay mudou de opinião. O que aconteceu?
Primeira explicação: a idéia do casamento gay produz uma resistência particular. Por quê? O americano médio divorcia-se sem muita hesitação, mas, paradoxalmente, mais de 80% dos casais americanos confirmam sua união numa cerimônia religiosa. Ou seja, os casamentos acontecem e quebram-se segundo as variações das paixões e dos desejos, mas ninguém admite. Quase todos preferem continuar concebendo o casamento como sacramento eterno, orientado pelo projeto de criar filhos. Nesse contexto, a idéia do casamento gay (que é sempre efeito de uma escolha afetiva) é incômoda, pois desvenda uma verdade que vale para quase todos os casamentos modernos: eles são instáveis não por acidente, mas por essência, por serem cimentados mais pela precariedade dos sentimentos que por compromissos solenes e procriativos diante de Deus.
Segunda explicação. Nos últimos tempos, o estilo de vida gay triunfou na cultura popular americana. O canal de televisão a cabo Bravo propõe, com grande sucesso, o show "Queer Eye for a Straight Guy" (olhar homo para um cara hétero). A cada semana, cinco gays reorganizam a vida de um heterossexual: arrumam sua casa, sua aparência física, suas escolhas de indumentária, suas maneiras, ensinando-lhe "estilo, bom gosto e classe". Os gays se tornaram alvos privilegiados e explícitos de muitas propagandas por serem, em média, segundo as pesquisas de mercado, consumidores mais abastados e mais requintados que os heterossexuais. Quando a mídia recenseia a vida noturna e os prazeres do momento, as boates e os clubes gays lotam regularmente os primeiros lugares das listas.
Em suma, o universo gay está se tornando, na cultura popular, um ideal de hedonismo bem-sucedido: "Eles, sim, têm uma vida boa". Subentendido: não a gente. Quando, numa proposição que habita a mente do homem da rua, o sujeito é uma terceira pessoa do plural ("eles"), a paranóia nunca está longe.
É fácil objetar que há uma grande distância entre o ideal da vida gay, que assombra a cabeça dos heterossexuais, e a realidade do universo gay, que não é tão gaio assim. Além disso, o dito estilo de vida gay concerne a uma minoria de homossexuais, que talvez sejam fascinados pela imagem que lhes é proposta, como um espelho, pelos heterossexuais que os idealizam.
Mas não adianta objetar: há uma razão de fundo que alimenta a idealização coletiva do universo gay. Os homossexuais, reprimidos por causa de suas práticas sexuais, só puderam reivindicar respeito e liberdade constituindo-se como grupo definido por sua sexualidade sufocada.
Consequência: eles são o único grupo social que deve sua consistência a uma modalidade comum de desejo sexual. A coesão feminista das mulheres, por exemplo, é decidida pelo sexo biológico e pela discriminação comum no trabalho e na vida de família, não por uma preferência sexual. Travestis e transexuais se definem como grupos a partir da experiência comum de um desacordo entre seu sexo biológico e seu gênero, não por uma preferência sexual.
Por isso, por serem o único grupo social definido pela forma de seus prazeres, os homossexuais encarnam facilmente, aos olhos dos "normais", um ideal genérico de prazer sexual: "eles" ("à diferença de nós") ousam e sabem gozar.
É um privilégio duvidoso. Afinal, na Europa de 70 anos atrás, os judeus eram aqueles que, "à diferença da gente", ousavam e sabiam fazer dinheiro, não é?
Quem é idealizado por saber pretensamente, de uma forma ou de outra, aproveitar a vida, mais cedo ou mais tarde, acaba sendo apontado como o responsável por nossas privações. A lógica corre assim: eles sabem gozar, eles têm o prazer que não tenho, eles me privam. A idealização do gozo dos outros é, frequentemente, a antecâmara do ódio e da perseguição.
Escuto, nestes dias, aqui no Brasil, vozes pretensamente liberais contra o casamento gay. Comentam: "Eles querem casar? Mas que coisa mais careta! A gente esperava deles que fossem os porta-bandeiras da revolução sexual". É um jeito velado de dizer: já gozam mais que a gente, agora vão apoderar-se também dos modestos prazeres do lar, os únicos que nos sobram?
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