18 setembro 2003

Schwarzenegger governador da Califórnia

Muitos californianos não gostam de seu governador atual e querem removê-lo. Conforme a lei de seu Estado, eles apresentaram uma petição devidamente assinada por 12% dos eleitores. Portanto haverá um novo pleito (eventualmente com um atraso por razões técnicas).

Duas reflexões: uma sobre os charmes da democracia direta e outra sobre os comentários humorísticos ou indignados, pelo mundo afora, contra a candidatura do ator Arnold Schwarzenegger ao governo da Califórnia.

Quem não gosta de um pouco de democracia direta? Não seria uma boa se os mandatos fossem condicionais? Sem esperar as próximas eleições, a gente despediria os representantes que não fazem o que prometeram. Além disso, seria ótimo, de vez em quando, dispensar qualquer mediação e legiferar por referendo.

É uma idéia simpática e perigosa. No caso, o atual governador da Califórnia, Gray Davis, foi eleito porque, em sua maioria, os cidadãos da Califórnia gostavam de seu programa. Mas, logo, os mesmos cidadãos decidiram por referendo que os impostos estaduais nunca aumentariam. Conclusão: Davis ficou de babaca, com um programão e sem fundos para realizá-lo.

Seria como se todos esperássemos que Marta Suplicy limpasse São Paulo como se fosse uma mesa cirúrgica, mas pudéssemos decretar que não haveria imposto para a coleta do lixo nem aumento do IPTU.

Há uma inegável sabedoria no sistema representativo ordinário. Por exemplo, ele leva em conta nossa dificuldade crônica em pagar o preço de nossos desejos. Na vida cotidiana, isso nos paralisa (por exemplo: quero casar, mas preciso de absolutamente todas as gavetas da cômoda e detesto toalha molhada). Na vida política, a coisa não é diferente.

Mas vamos a Schwarzenegger. Entre os candidatos do Partido Republicano (que não é minha preferência no espectro político americano), ele não é o pior: é liberal em matéria de costumes e favorável ao aborto. Outro aspecto positivo: é um "self-made man"; fez sozinho e do zero não só sua fortuna mas também seu corpo. Além disso, Schwarzenegger mostrou que ele pode ter idéias erradas, mas, ao menos, são as suas próprias. Casou-se com uma Kennedy e não aderiu ao Partido Democrata e às idéias do clã de sua mulher.

Como nada indica que o ator seja mais burro ou menos honesto que os outros candidatos, por que razão sua candidatura é objeto universal de gozação?

Schwarzenegger não é um político. Isso deveria torná-lo mais simpático. Em geral, nas democracias, os eleitores consideram os políticos profissionais uma espécie daninha que prolifera no interstício entre os cidadãos e o exercício do poder que deveria ser deles.

Curiosamente, os mesmos cidadãos também menosprezam o homem comum que se candidata a um ofício público. Ele é acusado, no mínimo, de inexperiência: seu mérito (de não ser um político profissional) é transformado em fraqueza. Paradoxal, não é?

Suspeito que a candidatura do cidadão comum nos incomode porque denuncia nosso absenteísmo. Insistimos na incompetência do homem da rua que se candidata porque queremos justificar nossa preguiça cívica.

Mas, no caso de Schwarzenegger, não se trata só disso. Há uma outra condenação: "Logo um ator! E de que filmes!". Alguns acrescentam: "Outro?", evocando Ronald Reagan (que também era ator). Essa lembrança confirma o preconceito. Afinal, quem diria: "Um advogado não, já tivemos Clinton"? Ou: "Um administrador de empresas não, já tivemos Bush"?

A ambivalência em relação aos atores é coisa antiga. Desde a aurora da modernidade, eles são esperados (enfim, alguém vem nos divertir um pouco) e receados: nômades e devassos, enchem de sonhos perigosos as cabeças de nossas crianças. Às vezes, aliás, eles as levam consigo, como Mangiafuoco, o dono do circo de "Pinocchio". Conclusão: no fim do século 19, em Manhattan, era complicado achar uma igreja que aceitasse enterrar os atores mortos em terra consagrada.
Claro, os atores nos enganam: passam a vida fantasiados, encarnando personagens que pouco têm a ver com quem eles são de verdade. Mas será que nosso vizinho faz diferente quando desfila com um carro emprestado como se fosse dele?

Somos todos atores: o culto das aparências é a chave que nos liberta do destino que nos seria reservado pelo passado e por nossas castas de origem. O aprendizado da vida social moderna é uma escola de recitação. Para confirmação, basta ler Balzac e Stendhal.

Se desprezamos os atores, é porque desprezamos a "mentira" de nossas vidas.

Mas há mais: os atores vestem a pele dos heróis de nossos sonhos. Amamos os heróis. Por isso mesmo não toleramos que os atores tenham vida própria, a não ser que seja uma continuação de nossos devaneios. Vale tudo: amores, divórcios, festas, doenças, bebedeiras e mesmo uma inusitada vida caseira. Única condição: que seja mantida a aura da estrela e do sonho.

Ora, o ato político, mais que qualquer outro, nos lembra de que há alguém atrás da máscara.
Lembra das pedras em Regina Duarte quando ela apareceu na propaganda de Serra? Não era apenas animosidade partidária. Era por ela ser atriz. A Viúva Porcina, namoradinha do Brasil, se preocupa com governo e eleições? É uma cidadã como a gente?

Schwarzenegger governador da Califórnia? O exterminador do futuro tomaria o poder, mas isso é o de menos. O problema é que, se Schwarzenegger se eleger governador, perderemos o exterminador.

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