Acabou o primeiro ano do novo governo, e quase ninguém está satisfeito com a situação do país. No entanto, fato curioso, o governo mantém o mesmo índice de aprovação do primeiro trimestre.
Certo, a gestão é criticada, mas a forma básica de grande parte das críticas recorrentes é peculiar. Numa estranha frente unida (que vai da esquerda militante até a direita conservadora, incluindo os que aprovam a gestão), muitos acusam o governo de não fazer o que ele se propunha fazer. Ou seja, apontando contradições entre o espírito do projeto e a realidade da política econômica e social, essas críticas não adotam a forma usual: "Vocês não fazem o que nós gostaríamos". Mas afirmam: "Vocês não fazem o que vocês mesmos gostariam".
O sentido das queixas é diferente segundo a proveniência. Por exemplo, a extrema esquerda exige uma fidelidade absoluta à promessa de justiça social, a esquerda moderada pede apenas um maior respeito dessa promessa na hora dos compromissos necessários e os conservadores agitam a contradição entre promessa e realidade para desacreditar o governo ("Eles enganaram vocês: dobram-se às necessidades do neoliberalismo pior que a gente e distribuem ilusões como pães quentes"). Mas, além das diferenças, a forma é a mesma. O governo não é acusado de defender interesses escusos que tornariam nossa vida miserável.
Ele é acusado de ser, de alguma forma, infiel a si mesmo. Nisso, as ditas críticas ao governo federal se parecem com nossa autocrítica mais banal.
Afinal, somos constantemente divididos entre uma aventurosa vontade de mudança e escolhas conformistas que são as nossas, mas que nos frustram e com as quais não concordamos. Ou, então, entre grandes princípios nos quais acreditamos firmemente e comportamentos que adotamos (com uma certa vergonha) para proteger nossos interesses.
Quero justiça social já, mas não sou nenhum São Francisco, e a simples redistribuição não resolveria nada. Quero reforma agrária já, mas meu sítio é produtivo e, de qualquer forma, não basta assentar famílias; seria preciso criar uma rede de cooperativas, e isso é complicado.
Quero uma sociedade igualitária, mas três salários mínimos para a faxineira não tem como; se eu for obrigado a dispensar seus serviços, não vai ser pior?
Para explicar a dissonância entre nossos anseios e nossa realidade, acusamos a dureza impiedosa do mundo: gostaríamos de ser generosos e revolucionários, mas, se fôssemos, a realidade nos atropelaria. A desculpa não é maquiavélica. De fato, o mundo não é mole: ele nos força a desistir do que nos parece certo e racional em favor do que é apenas razoável.
Em geral, aguentamos os compromissos aos quais nos resignamos graças a um reforço retórico, a uma dose extra de declarações de intenções e de princípios.
Somos todos (ou quase) José Dirceu ou Palocci na hora dos apertos do fim do mês. Somos todos (ou quase) Lula na hora de declarar guerra à fome ou ao desemprego e de chorar evocando o homem do lixão que come melancia descartada.
Exatamente como o governo, quando apresentamos nossa face ao mundo (e a nós mesmos), esquecemos nosso pragmatismo (ele nos é imposto, não é bem "nosso") e nos imaginamos e proclamamos grandiosamente generosos, embora impedidos.
A oscilação entre entusiasmos revoltados e inércia conformista é uma herança de nossa adolescência. Tivemos que decidir (e talvez estejamos eternamente decidindo) se, para nos tornarmos adultos, é melhor imitar os genitores, sacrificando nossa individualidade, ou contrariá-los, encontrando a prova de nossa autonomia na decepção e no desespero dos pais.
A solução mais popular consiste em tomar o caminho de uma "normalidade" que nos garante algum conforto e que corrigimos com sobressaltos de rebeldia espetacular.
Por exemplo, estudo, sei lá, direito constitucional, mas, à noite, saio na balada com os Gaddafis da vida. Por mais que estejamos infelizes com a situação, o governo atual nos satisfaz, não por suas realizações, mas porque ele encena nossas próprias contradições.
É um conforto constatar que as mulheres e os homens que elegemos se dobram às mesmas necessidades que nós acusamos de frear nossos impulsos generosos e libertários.
Claro, a contradição não nos deixa tranquilos. Na hora dos compromissos, somos atormentados pela voz da consciência. Talvez por isso surja uma simpatia quase unânime (inclusive nas fileiras da direita) pelos excluídos e demissionários do PT.
Aproveitamo-nos dessa ocasião para tomar as dores de nossa parte rebelde. Podemos torcer por nossas Heloísas Helenas e nossos Gabeiras internos sem risco algum, pois o governo (e não nós) se encarrega de silenciá-los e, portanto, leva a culpa.
A mesmice social-democrata não satisfazia nosso anseios radicais de mudança e de justiça. Um regime que seguisse só esses anseios seria provavelmente catastrófico.
O governo do PT inventa uma nova fórmula, adequada à nossa divisão subjetiva: a social democracia neoliberal com retórica radical da esperança.
Estamos insatisfeitos com o governo assim como estamos insatisfeitos com nossas próprias contradições. E o governo está próximo do povo como nunca, pois, pela felicidade da nação, ele é nosso retrato.
28 dezembro 2003
25 dezembro 2003
É Natal
Os primeiros Natais de minha infância foram momentos encantados. Ou, ao menos, é assim que me lembro deles.
No dia 24, de tarde, cada escrivaninha e console da casa era levado para a sala de jantar e servia para encompridar a mesa, de maneira a acomodar os 20 e tantos familiares e amigos de sempre. Logo começava a preparação do peixe. Meu irmão e eu ajudávamos meu avô na tarefa selvagem de tirar a pele das enguias, que eram o prato tradicional e que nenhum de nós gostava de comer. Antes de ir para a cama, nós, as crianças, preparávamos, perto da árvore, uma mesinha: um copo de vinho branco, um prato com uma fatia de bolo e um pequeno guardanapo. No chão da entrada, colocávamos uma bacia com água e outra com duas ou três cenouras. O bolo e o vinho eram para o menino Jesus. A água e as cenouras eram para a mula que o carregava.
Acordávamos de madrugada, pela ânsia de ver os presentes e de constatar a mágica passagem do menino Jesus. A casa estava deserta, os presentes brilhavam embaixo da árvore, o copo de vinho tinha sido em parte (só em parte) bebido, a fatia de bolo tinha sido mordida, assim como as cenouras. Havia, sempre, em algum lugar do corredor, uma poça: a mula, coitadinha, tinha feito xixi. Da porta de entrada até a árvore, espalhava-se um rasto de folhas e pétalas de flores, que, aparentemente, o menino Jesus deixava atrás de si, por onde passasse.
Não sei por que, na nossa família, era o menino Jesus, e não Papai Noel, que trazia os presentes. A coisa era ainda mais curiosa por meu pai ser declarada e ferozmente ateu. E minha mãe o acompanhava.
Menino Jesus ou não, era bom fazer de conta: o ritual era um segredo de família que celebrava o milagre de estarmos juntos. Também era um alívio constatar que nem todos os presentes vinham de meus pais. E era gostoso acreditar numa certa benevolência do mundo ou de seu criador: havia ao menos um dia no ano em que, indo para a cama cedo e forçando-se a fechar os olhos, alguém, no meio da noite, faria o necessário para que acordássemos felizes.
Houve Natais em que o encanto se perdeu. Num deles, bem perto da meia-noite, morreu de repente o pai de meu melhor amigo. Meu pai saiu correndo com sua bolsa de médico; a festa parou. Nós descobrimos que, às vezes, não só a mula, mas o próprio menino Jesus se esquecia (de alguém, no caso). Os presentes, na manhã seguinte, estavam lá; mas eu não sabia o que fazer com eles. Também estava lá Alessandro, meu amigo do peito, órfão.
E houve outros Natais em que explodiram brigas de família incompreensíveis (para nós). Um tio que saiu batendo a porta porque não gostou do lugar que sua mulher ocupava na mesa ou uma nora que não se dava com a sogra. Esperávamos demais e, à força de querer (e simular) harmonia para a família e o mundo inteiro, vivíamos decepções fellinianas se algum detalhe atrapalhasse o cartão-postal natalino.
Mais tarde, chegaram os anti-Natais da adolescência. Eram proclamações indignadas contra a família. Valia qualquer coisa para contrariar o espírito dos Natais da infância: Natal numa boate? Natal num prostíbulo? Natal jogando pôquer num boteco?
Ou, então, eram proclamações políticas: Natal numa célula de militantes, Natal com amigos e companheiros, sem festa, sem árvore e cheio de conversas sobre as armadilhas "alienantes" do consumo.
Alguns anos atrás, no dia 25, acordei muito cedo, embora soubesse que ninguém viera, no meio da noite, depositar presentes embaixo da árvore. O apartamento estava deserto, todos dormiam ainda. Atravessei a sala assim como costumo dormir, de camiseta, sem pijama. Olhei com carinho para os restos do jantar da noite anterior e liguei a máquina do café. Não sei por que, achei graça enfiar na cabeça um chapéu de Papai Noel que estava em cima da mesa. Logo fui buscar o jornal na porta de casa, caso ele já tivesse chegado.
Por precaução pudica e por preguiça de vestir uma calça ou mesmo uma cueca, tentei inventar um jeito de apanhar o jornal sem impor minha nudez aos (improváveis) vizinhos que estivessem circulando pelo prédio às 6h do dia de Natal. Ajoelhado, abri a porta e estendi o braço; o jornal estava lá, mas longe demais. Insinuei o ombro na abertura, mas não bastou. Avancei mais, sempre ajoelhado, até que, empurrado pela própria porta, que é comandada por uma mola que a fecha automaticamente, estava mais fora do que dentro do apartamento. Por sorte, o batente não fechou atrás de mim. No instante em que, enfim, coloquei a mão no jornal, escutei um barulho. Levantei os olhos: bem na minha frente, um vizinho, também ajoelhado e seminu, era vítima da mesma manobra. Ficamos imóveis um longo momento, até que, de jornal na mão, desejei-lhe "feliz Natal" e recuei.
Cinco minutos depois, sentado contra a porta fechada do meu apartamento, ainda estava rindo, constatando que, durante esse estranho encontro, ficara não só meio nu, de camiseta, mas também de chapéu de Papai Noel.
É um bom retrato de meus Natais de hoje. O chapéu representa uma certa fé no ritual que afirma a permanência dos afetos familiares e das amizades, mas sem esquecer que o espírito de Natal não ganha das notícias do dia (o jornal na mão) nem dos desejos que nascem abaixo da cintura (às vezes estamos sem cueca).
Feliz Natal a todos.
No dia 24, de tarde, cada escrivaninha e console da casa era levado para a sala de jantar e servia para encompridar a mesa, de maneira a acomodar os 20 e tantos familiares e amigos de sempre. Logo começava a preparação do peixe. Meu irmão e eu ajudávamos meu avô na tarefa selvagem de tirar a pele das enguias, que eram o prato tradicional e que nenhum de nós gostava de comer. Antes de ir para a cama, nós, as crianças, preparávamos, perto da árvore, uma mesinha: um copo de vinho branco, um prato com uma fatia de bolo e um pequeno guardanapo. No chão da entrada, colocávamos uma bacia com água e outra com duas ou três cenouras. O bolo e o vinho eram para o menino Jesus. A água e as cenouras eram para a mula que o carregava.
Acordávamos de madrugada, pela ânsia de ver os presentes e de constatar a mágica passagem do menino Jesus. A casa estava deserta, os presentes brilhavam embaixo da árvore, o copo de vinho tinha sido em parte (só em parte) bebido, a fatia de bolo tinha sido mordida, assim como as cenouras. Havia, sempre, em algum lugar do corredor, uma poça: a mula, coitadinha, tinha feito xixi. Da porta de entrada até a árvore, espalhava-se um rasto de folhas e pétalas de flores, que, aparentemente, o menino Jesus deixava atrás de si, por onde passasse.
Não sei por que, na nossa família, era o menino Jesus, e não Papai Noel, que trazia os presentes. A coisa era ainda mais curiosa por meu pai ser declarada e ferozmente ateu. E minha mãe o acompanhava.
Menino Jesus ou não, era bom fazer de conta: o ritual era um segredo de família que celebrava o milagre de estarmos juntos. Também era um alívio constatar que nem todos os presentes vinham de meus pais. E era gostoso acreditar numa certa benevolência do mundo ou de seu criador: havia ao menos um dia no ano em que, indo para a cama cedo e forçando-se a fechar os olhos, alguém, no meio da noite, faria o necessário para que acordássemos felizes.
Houve Natais em que o encanto se perdeu. Num deles, bem perto da meia-noite, morreu de repente o pai de meu melhor amigo. Meu pai saiu correndo com sua bolsa de médico; a festa parou. Nós descobrimos que, às vezes, não só a mula, mas o próprio menino Jesus se esquecia (de alguém, no caso). Os presentes, na manhã seguinte, estavam lá; mas eu não sabia o que fazer com eles. Também estava lá Alessandro, meu amigo do peito, órfão.
E houve outros Natais em que explodiram brigas de família incompreensíveis (para nós). Um tio que saiu batendo a porta porque não gostou do lugar que sua mulher ocupava na mesa ou uma nora que não se dava com a sogra. Esperávamos demais e, à força de querer (e simular) harmonia para a família e o mundo inteiro, vivíamos decepções fellinianas se algum detalhe atrapalhasse o cartão-postal natalino.
Mais tarde, chegaram os anti-Natais da adolescência. Eram proclamações indignadas contra a família. Valia qualquer coisa para contrariar o espírito dos Natais da infância: Natal numa boate? Natal num prostíbulo? Natal jogando pôquer num boteco?
Ou, então, eram proclamações políticas: Natal numa célula de militantes, Natal com amigos e companheiros, sem festa, sem árvore e cheio de conversas sobre as armadilhas "alienantes" do consumo.
Alguns anos atrás, no dia 25, acordei muito cedo, embora soubesse que ninguém viera, no meio da noite, depositar presentes embaixo da árvore. O apartamento estava deserto, todos dormiam ainda. Atravessei a sala assim como costumo dormir, de camiseta, sem pijama. Olhei com carinho para os restos do jantar da noite anterior e liguei a máquina do café. Não sei por que, achei graça enfiar na cabeça um chapéu de Papai Noel que estava em cima da mesa. Logo fui buscar o jornal na porta de casa, caso ele já tivesse chegado.
Por precaução pudica e por preguiça de vestir uma calça ou mesmo uma cueca, tentei inventar um jeito de apanhar o jornal sem impor minha nudez aos (improváveis) vizinhos que estivessem circulando pelo prédio às 6h do dia de Natal. Ajoelhado, abri a porta e estendi o braço; o jornal estava lá, mas longe demais. Insinuei o ombro na abertura, mas não bastou. Avancei mais, sempre ajoelhado, até que, empurrado pela própria porta, que é comandada por uma mola que a fecha automaticamente, estava mais fora do que dentro do apartamento. Por sorte, o batente não fechou atrás de mim. No instante em que, enfim, coloquei a mão no jornal, escutei um barulho. Levantei os olhos: bem na minha frente, um vizinho, também ajoelhado e seminu, era vítima da mesma manobra. Ficamos imóveis um longo momento, até que, de jornal na mão, desejei-lhe "feliz Natal" e recuei.
Cinco minutos depois, sentado contra a porta fechada do meu apartamento, ainda estava rindo, constatando que, durante esse estranho encontro, ficara não só meio nu, de camiseta, mas também de chapéu de Papai Noel.
É um bom retrato de meus Natais de hoje. O chapéu representa uma certa fé no ritual que afirma a permanência dos afetos familiares e das amizades, mas sem esquecer que o espírito de Natal não ganha das notícias do dia (o jornal na mão) nem dos desejos que nascem abaixo da cintura (às vezes estamos sem cueca).
Feliz Natal a todos.
18 dezembro 2003
Quem julgará Saddam Hussein?
Resumo alguns sentimentos modernos em matéria de justiça.
O julgamento que conta é o de nossa consciência. A prova disso: fazemos, desde o século 17, uma bela diferença entre o que é legal e o que é justo. Condenados por excesso de velocidade na Dutra, entendemos que 130 km/h seja ilegal, mas nós conhecemos as razões de nossa pressa e só nós sabemos se, ilegal ou não, nossa velocidade era justa ou injusta.
As coisas eram mais simples quando, nem tanto tempo atrás, achávamos que a decisão podia ficar na mão de um Deus que se expressaria publicamente. Acusados, caminharíamos sobre a brasa e seríamos inocentados se nossos pés não queimassem.
Também devia ser mais simples quando podíamos delegar a justiça (não apenas a legalidade) a um sábio, príncipe ou representante de Deus, ao qual reconheceríamos o poder de proclamar, incontestado, se somos culpados ou inocentes.
Esses recursos não valem para quem, como a gente, erige o foro íntimo em corte suprema.
Ora, tantas cortes singulares e inevitavelmente contraditórias não poderiam regrar eficazmente nossa vida social; nos resignamos, portanto, a um compromisso: consideramos justo e toleramos que um júri de outros humanos (cujo foro íntimo seria comparável ao nosso) escute as acusações e os argumentos de defesa e, assim, nos condene ou nos inocente.
Detalhe crucial: os sentimentos que acabo de resumir são uma realidade cultural. Valem para nós, ocidentais e modernos, que 1) damos sentido ao mundo a partir de certezas (ou dúvidas) subjetivas e 2) acreditamos que todos os homens sejam nossos semelhantes.
Essas considerações teriam sido pouco relevantes no processo de Nuremberg. Os nazistas eram tão ocidentais e modernos quanto nós. Ou seja, foi-lhes imposta uma justiça nos moldes da cultura da qual eles também eram o produto. O mesmo vale para o processo em curso contra os responsáveis por crimes contra a humanidade na Bósnia.
A expressão "crime contra a humanidade", aliás, tem um duplo sentido. Designa um crime tão abominável que a humanidade inteira é ferida pela crueldade dos atos. Mas designa também e talvez sobretudo um crime contra a idéia de humanidade, ou seja, contra a idéia de que, além ou aquém de nossas diferenças religiosas, nacionais etc., somos semelhantes, membros de uma mesma espécie. Perseguir, exterminar uma população por sua diferença significa negar a existência da comunidade dos humanos, quebrar um pressuposto que talvez seja a melhor conquista de nossa cultura.
Pode-se dizer que um tribunal de "pares" julgou os nazistas porque quebraram uma regra da cultura à qual eles mesmos pertenciam. O mesmo vale para Milosevic e companhia.
A história de Saddam Hussein talvez seja um pouco diferente. O Iraque é uma criação da cultura ocidental: esquecidos de que a comunidade da espécie humana é uma invenção cultural, os ocidentais acreditaram que na Mesopotâmia, no caso, seria possível a coexistência, numa mesma nação, de diferenças étnicas (árabes e curdos) e religiosas (sunitas e xiitas).
Saddam topou o mandato, mas não seu pressuposto. Governou sua "nação" como um chefe tribal, ou seja, exclusivamente em prol de sua família e de sua tribo, a minoria sunita. Reprimiu e exterminou xiitas e curdos. Perseguiu os opositores como se não fossem gente. É um crime contra a idéia de humanidade. Mas esse crime vale na consciência ocidental moderna. Será que é essa a consciência de Saddam?
Não tenho nenhuma compaixão. Quer a gente condene ou não a intervenção americana no Iraque, não derramo lágrimas por um tirano. Desejo-lhe o destino que desejo a todos aqueles que ameaçam o que nossa cultura inventou de melhor.
Mas acho desastroso que esqueçamos o seguinte: a Justiça que o condenará não será uma Justiça absoluta, que não existe, mas a nossa, ocidental e moderna. O tribunal que se reunirá para julgá-lo será uma emanação de nosso expansionismo cultural. Não lamento que seja assim. Mas lamento que possamos, como acredito que acontecerá, negar mais uma vez a diferença e o conflito cultural que se expressarão no julgamento.
Gostaria, em suma, que nossa cultura abandonasse sua extraordinária pretensão de ser não uma cultura, mas a voz de alguma "natureza humana".
Ao que parece, os atos de Saddam serão avaliados por um tribunal iraquiano. Isso satisfaz nosso sentimento de justiça, pois ele será julgado por um júri de seus "pares" e "semelhantes", não é? Mas pense bem: num eventual júri iraquiano, sentarão xiitas (que, para Saddam, são uma "tribo" oposta e, portanto, menos "humana" do que a sua) e curdos (que, para ele, devem ser uma sub-raça exterminável com a mesma emoção que nós sentimos ao erradicar o mosquito da dengue).
O Ocidente verá, nesse julgamento, a obra de uma Justiça imemorial e universal. O acusado verá apenas um conciliábulo de inimigos que têm o direito de dispor de sua vida não em nome da Justiça, mas em nome da força, ou seja, por ele ter sido derrotado.
Aposto que manterá a expressão perdida do chefe tribal desfilando acorrentado atrás do Exército vencedor.
E, falando em expressão, a cara de Saddam descabelado e barbudo, de olhar apagado, enquanto um médico de luvas de látex examinava seus dentes e repartia seus cabelos procurando lêndeas e piolhos, parecia estranhamente familiar. Era o protótipo do mendigo árabe nas ruas de Paris.
O julgamento que conta é o de nossa consciência. A prova disso: fazemos, desde o século 17, uma bela diferença entre o que é legal e o que é justo. Condenados por excesso de velocidade na Dutra, entendemos que 130 km/h seja ilegal, mas nós conhecemos as razões de nossa pressa e só nós sabemos se, ilegal ou não, nossa velocidade era justa ou injusta.
As coisas eram mais simples quando, nem tanto tempo atrás, achávamos que a decisão podia ficar na mão de um Deus que se expressaria publicamente. Acusados, caminharíamos sobre a brasa e seríamos inocentados se nossos pés não queimassem.
Também devia ser mais simples quando podíamos delegar a justiça (não apenas a legalidade) a um sábio, príncipe ou representante de Deus, ao qual reconheceríamos o poder de proclamar, incontestado, se somos culpados ou inocentes.
Esses recursos não valem para quem, como a gente, erige o foro íntimo em corte suprema.
Ora, tantas cortes singulares e inevitavelmente contraditórias não poderiam regrar eficazmente nossa vida social; nos resignamos, portanto, a um compromisso: consideramos justo e toleramos que um júri de outros humanos (cujo foro íntimo seria comparável ao nosso) escute as acusações e os argumentos de defesa e, assim, nos condene ou nos inocente.
Detalhe crucial: os sentimentos que acabo de resumir são uma realidade cultural. Valem para nós, ocidentais e modernos, que 1) damos sentido ao mundo a partir de certezas (ou dúvidas) subjetivas e 2) acreditamos que todos os homens sejam nossos semelhantes.
Essas considerações teriam sido pouco relevantes no processo de Nuremberg. Os nazistas eram tão ocidentais e modernos quanto nós. Ou seja, foi-lhes imposta uma justiça nos moldes da cultura da qual eles também eram o produto. O mesmo vale para o processo em curso contra os responsáveis por crimes contra a humanidade na Bósnia.
A expressão "crime contra a humanidade", aliás, tem um duplo sentido. Designa um crime tão abominável que a humanidade inteira é ferida pela crueldade dos atos. Mas designa também e talvez sobretudo um crime contra a idéia de humanidade, ou seja, contra a idéia de que, além ou aquém de nossas diferenças religiosas, nacionais etc., somos semelhantes, membros de uma mesma espécie. Perseguir, exterminar uma população por sua diferença significa negar a existência da comunidade dos humanos, quebrar um pressuposto que talvez seja a melhor conquista de nossa cultura.
Pode-se dizer que um tribunal de "pares" julgou os nazistas porque quebraram uma regra da cultura à qual eles mesmos pertenciam. O mesmo vale para Milosevic e companhia.
A história de Saddam Hussein talvez seja um pouco diferente. O Iraque é uma criação da cultura ocidental: esquecidos de que a comunidade da espécie humana é uma invenção cultural, os ocidentais acreditaram que na Mesopotâmia, no caso, seria possível a coexistência, numa mesma nação, de diferenças étnicas (árabes e curdos) e religiosas (sunitas e xiitas).
Saddam topou o mandato, mas não seu pressuposto. Governou sua "nação" como um chefe tribal, ou seja, exclusivamente em prol de sua família e de sua tribo, a minoria sunita. Reprimiu e exterminou xiitas e curdos. Perseguiu os opositores como se não fossem gente. É um crime contra a idéia de humanidade. Mas esse crime vale na consciência ocidental moderna. Será que é essa a consciência de Saddam?
Não tenho nenhuma compaixão. Quer a gente condene ou não a intervenção americana no Iraque, não derramo lágrimas por um tirano. Desejo-lhe o destino que desejo a todos aqueles que ameaçam o que nossa cultura inventou de melhor.
Mas acho desastroso que esqueçamos o seguinte: a Justiça que o condenará não será uma Justiça absoluta, que não existe, mas a nossa, ocidental e moderna. O tribunal que se reunirá para julgá-lo será uma emanação de nosso expansionismo cultural. Não lamento que seja assim. Mas lamento que possamos, como acredito que acontecerá, negar mais uma vez a diferença e o conflito cultural que se expressarão no julgamento.
Gostaria, em suma, que nossa cultura abandonasse sua extraordinária pretensão de ser não uma cultura, mas a voz de alguma "natureza humana".
Ao que parece, os atos de Saddam serão avaliados por um tribunal iraquiano. Isso satisfaz nosso sentimento de justiça, pois ele será julgado por um júri de seus "pares" e "semelhantes", não é? Mas pense bem: num eventual júri iraquiano, sentarão xiitas (que, para Saddam, são uma "tribo" oposta e, portanto, menos "humana" do que a sua) e curdos (que, para ele, devem ser uma sub-raça exterminável com a mesma emoção que nós sentimos ao erradicar o mosquito da dengue).
O Ocidente verá, nesse julgamento, a obra de uma Justiça imemorial e universal. O acusado verá apenas um conciliábulo de inimigos que têm o direito de dispor de sua vida não em nome da Justiça, mas em nome da força, ou seja, por ele ter sido derrotado.
Aposto que manterá a expressão perdida do chefe tribal desfilando acorrentado atrás do Exército vencedor.
E, falando em expressão, a cara de Saddam descabelado e barbudo, de olhar apagado, enquanto um médico de luvas de látex examinava seus dentes e repartia seus cabelos procurando lêndeas e piolhos, parecia estranhamente familiar. Era o protótipo do mendigo árabe nas ruas de Paris.
11 dezembro 2003
Conselhos para encontrar um amor no verão
A cada ano, inelutavelmente, quando o verão se aproxima, a imprensa nos propõe pautas animadas por uma questão recorrente: como encontrar um amor (ou vários) neste verão?
Não são apenas incitações festivas a libidinagens estivais. Às vezes, aliás, elas são acompanhadas de conselhos para prolongar as paixões de verão e, quem sabe, transformá-las em amores eternos enquanto durem.
Seja como for, é aceita universalmente a idéia de que o verão seria a melhor estação para achar os parceiros ou as parceiras que fizeram falta no inverno.
Claro, durante as férias, todos têm mais tempo e disponibilidade para dedicar-se a essa tarefa. Mas a razão principal que faria do verão a estação dos namoros parece ser outra: no verão, a gente tira a roupa (ao menos em parte) e sai da toca. É o momento de ver e ser visto, de escolher e ser escolhido.
Deve ser por isso que uma parte relevante dos conselhos para um verão namoradeiro são, de fato, sugestões estéticas: como perder aqueles cinco quilos em três semanas, como achatar o estômago, como esculpir os abdominais, como tornear as pernas e arrebitar as nádegas, como conseguir um bronzeado natural e dourado, qual maquiagem usar na praia, como escolher a sunga ou o biquíni certos, como desembaraçar o cabelo depois da água salgada, como vestir-se nas baladas da noite e por aí vai.
Por que não? Afinal, para encontrar um namoro, é preciso seduzir, não é?
Certo, mas não deixa de me surpreender que os conselhos para encontrar companhia sejam quase sempre dicas para nossa aparência. Ou seja, a vontade de achar alguém com quem valha a pena ficar (ao menos um pouco) se traduz em anseios narcisistas. Saímos à procura de um outro para beijar e acabamos embaciando o espelho.
Poderia ser engraçado, se não fosse triste e regular, na volta das férias, o catálogo das decepções. Não havia ninguém que valesse a pena. Ou, se havia, não vi. Quer dizer, havia um cara que não parava de olhar, mas eu não devolvia, claro. Quando levantou e veio na minha direção, abracei-me à minha amiga: "Fala, fala, pelo amor de Deus, faz de conta que estamos num daqueles papos que não dá para interromper". Ou, então, havia, sim, aquela mulher que passava a cada dia na frente da varanda, mas eu ia lhe dizer o quê? "Com licença, minha senhora, estou sozinho e a fim de companhia"?
As praias e os calçadões dos balneários se transformam em arenas de um estranho jogo do desencontro: muitos convergem proclamando planos de amores e conquistas, todos desfilam para que os olhares cruzados confirmem a força de atração de seu "look", mas poucos se permitem um gesto que poderia alterar a máscara que eles compuseram para seduzir.
A razão dessa situação é simples. É possível que cuidemos de nossa imagem na intenção de agradar ao outro, mas esse cuidado é um obstáculo a qualquer encontro ou relação. A perfeição almejada e arvorada como instrumento de sedução seria inevitavelmente comprometida se revelássemos nosso desejo. A arma da sedução (minha imagem malhada, bronzeada e produzida para seduzir) me reserva uma sina de solidão, pois ela pede também que, sendo perfeito ou perfeita, eu mostre ao mundo que não preciso de ninguém.
A mulher que receia parecer atrevida ou pouco pudica, o homem que teme mostrar-se babaca de tanto carente são vítimas do mesmo impasse narcisista: as condições para eles serem desejáveis incluem a impávida demostração de que nada lhes falta.
Em suma, o narcisismo, querendo tornar todos (ou quase) desejáveis, impede a todos de desejar.
Pensando bem, como estação dos namoros, seria preferível contar com o inverno. Quem sabe, na penumbra de um bar, protegidos por casacos e cachecóis, a gente se esqueça um instante dos requisitos da fachada sedutora, baixe a guarda e consiga confessar faltas, desejos e vontades.
Uma lembrança. Aos 16 ou 17 anos, não me lembro direito, passei uma semana de férias em Rimini, na Riviera Adriática. Éramos um pequeno grupo de moços sedentos de aventuras, depois de um inverno de aulas de grego e latim. Todos imaginávamos e antevíamos paixões avassaladoras. Mas só um de nós as vivia: Jimmy, um jovem que nós não achávamos nem grande sedutor nem especialmente bom de papo, voltava a cada dia, ou melhor, a cada noite, para a pensão com uma companheira. O grupo reagiu desdenhosamente: afinal, as moças não eram aquelas deusas com as quais sonhávamos. Mas logo quisemos saber o segredo de Jimmy.
"Qual é o truque, o que você faz?" Jimmy explicou: ele abordava, sistematicamente e sem hesitar, todas as moças e as mulheres que lhe parecessem minimamente agradáveis. Claro, frequentemente a coisa não dava em nada. Ele era, cotidianamente, ignorado ou rechaçado 20, quiçá 30 vezes; para a população feminina do balneário, devia ser um estorvo, mas sempre havia ao menos uma para abrir o sorriso e aceitar um convite. Ficamos estupefatos: o segredo era que Jimmy não tinha medo de uma recusa, nem vergonha de seu desejo. Para ele, simplesmente, as feridas do amor-próprio contavam menos do que sua vontade de não ficar só.
Não são apenas incitações festivas a libidinagens estivais. Às vezes, aliás, elas são acompanhadas de conselhos para prolongar as paixões de verão e, quem sabe, transformá-las em amores eternos enquanto durem.
Seja como for, é aceita universalmente a idéia de que o verão seria a melhor estação para achar os parceiros ou as parceiras que fizeram falta no inverno.
Claro, durante as férias, todos têm mais tempo e disponibilidade para dedicar-se a essa tarefa. Mas a razão principal que faria do verão a estação dos namoros parece ser outra: no verão, a gente tira a roupa (ao menos em parte) e sai da toca. É o momento de ver e ser visto, de escolher e ser escolhido.
Deve ser por isso que uma parte relevante dos conselhos para um verão namoradeiro são, de fato, sugestões estéticas: como perder aqueles cinco quilos em três semanas, como achatar o estômago, como esculpir os abdominais, como tornear as pernas e arrebitar as nádegas, como conseguir um bronzeado natural e dourado, qual maquiagem usar na praia, como escolher a sunga ou o biquíni certos, como desembaraçar o cabelo depois da água salgada, como vestir-se nas baladas da noite e por aí vai.
Por que não? Afinal, para encontrar um namoro, é preciso seduzir, não é?
Certo, mas não deixa de me surpreender que os conselhos para encontrar companhia sejam quase sempre dicas para nossa aparência. Ou seja, a vontade de achar alguém com quem valha a pena ficar (ao menos um pouco) se traduz em anseios narcisistas. Saímos à procura de um outro para beijar e acabamos embaciando o espelho.
Poderia ser engraçado, se não fosse triste e regular, na volta das férias, o catálogo das decepções. Não havia ninguém que valesse a pena. Ou, se havia, não vi. Quer dizer, havia um cara que não parava de olhar, mas eu não devolvia, claro. Quando levantou e veio na minha direção, abracei-me à minha amiga: "Fala, fala, pelo amor de Deus, faz de conta que estamos num daqueles papos que não dá para interromper". Ou, então, havia, sim, aquela mulher que passava a cada dia na frente da varanda, mas eu ia lhe dizer o quê? "Com licença, minha senhora, estou sozinho e a fim de companhia"?
As praias e os calçadões dos balneários se transformam em arenas de um estranho jogo do desencontro: muitos convergem proclamando planos de amores e conquistas, todos desfilam para que os olhares cruzados confirmem a força de atração de seu "look", mas poucos se permitem um gesto que poderia alterar a máscara que eles compuseram para seduzir.
A razão dessa situação é simples. É possível que cuidemos de nossa imagem na intenção de agradar ao outro, mas esse cuidado é um obstáculo a qualquer encontro ou relação. A perfeição almejada e arvorada como instrumento de sedução seria inevitavelmente comprometida se revelássemos nosso desejo. A arma da sedução (minha imagem malhada, bronzeada e produzida para seduzir) me reserva uma sina de solidão, pois ela pede também que, sendo perfeito ou perfeita, eu mostre ao mundo que não preciso de ninguém.
A mulher que receia parecer atrevida ou pouco pudica, o homem que teme mostrar-se babaca de tanto carente são vítimas do mesmo impasse narcisista: as condições para eles serem desejáveis incluem a impávida demostração de que nada lhes falta.
Em suma, o narcisismo, querendo tornar todos (ou quase) desejáveis, impede a todos de desejar.
Pensando bem, como estação dos namoros, seria preferível contar com o inverno. Quem sabe, na penumbra de um bar, protegidos por casacos e cachecóis, a gente se esqueça um instante dos requisitos da fachada sedutora, baixe a guarda e consiga confessar faltas, desejos e vontades.
Uma lembrança. Aos 16 ou 17 anos, não me lembro direito, passei uma semana de férias em Rimini, na Riviera Adriática. Éramos um pequeno grupo de moços sedentos de aventuras, depois de um inverno de aulas de grego e latim. Todos imaginávamos e antevíamos paixões avassaladoras. Mas só um de nós as vivia: Jimmy, um jovem que nós não achávamos nem grande sedutor nem especialmente bom de papo, voltava a cada dia, ou melhor, a cada noite, para a pensão com uma companheira. O grupo reagiu desdenhosamente: afinal, as moças não eram aquelas deusas com as quais sonhávamos. Mas logo quisemos saber o segredo de Jimmy.
"Qual é o truque, o que você faz?" Jimmy explicou: ele abordava, sistematicamente e sem hesitar, todas as moças e as mulheres que lhe parecessem minimamente agradáveis. Claro, frequentemente a coisa não dava em nada. Ele era, cotidianamente, ignorado ou rechaçado 20, quiçá 30 vezes; para a população feminina do balneário, devia ser um estorvo, mas sempre havia ao menos uma para abrir o sorriso e aceitar um convite. Ficamos estupefatos: o segredo era que Jimmy não tinha medo de uma recusa, nem vergonha de seu desejo. Para ele, simplesmente, as feridas do amor-próprio contavam menos do que sua vontade de não ficar só.
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