Resumo alguns sentimentos modernos em matéria de justiça.
O julgamento que conta é o de nossa consciência. A prova disso: fazemos, desde o século 17, uma bela diferença entre o que é legal e o que é justo. Condenados por excesso de velocidade na Dutra, entendemos que 130 km/h seja ilegal, mas nós conhecemos as razões de nossa pressa e só nós sabemos se, ilegal ou não, nossa velocidade era justa ou injusta.
As coisas eram mais simples quando, nem tanto tempo atrás, achávamos que a decisão podia ficar na mão de um Deus que se expressaria publicamente. Acusados, caminharíamos sobre a brasa e seríamos inocentados se nossos pés não queimassem.
Também devia ser mais simples quando podíamos delegar a justiça (não apenas a legalidade) a um sábio, príncipe ou representante de Deus, ao qual reconheceríamos o poder de proclamar, incontestado, se somos culpados ou inocentes.
Esses recursos não valem para quem, como a gente, erige o foro íntimo em corte suprema.
Ora, tantas cortes singulares e inevitavelmente contraditórias não poderiam regrar eficazmente nossa vida social; nos resignamos, portanto, a um compromisso: consideramos justo e toleramos que um júri de outros humanos (cujo foro íntimo seria comparável ao nosso) escute as acusações e os argumentos de defesa e, assim, nos condene ou nos inocente.
Detalhe crucial: os sentimentos que acabo de resumir são uma realidade cultural. Valem para nós, ocidentais e modernos, que 1) damos sentido ao mundo a partir de certezas (ou dúvidas) subjetivas e 2) acreditamos que todos os homens sejam nossos semelhantes.
Essas considerações teriam sido pouco relevantes no processo de Nuremberg. Os nazistas eram tão ocidentais e modernos quanto nós. Ou seja, foi-lhes imposta uma justiça nos moldes da cultura da qual eles também eram o produto. O mesmo vale para o processo em curso contra os responsáveis por crimes contra a humanidade na Bósnia.
A expressão "crime contra a humanidade", aliás, tem um duplo sentido. Designa um crime tão abominável que a humanidade inteira é ferida pela crueldade dos atos. Mas designa também e talvez sobretudo um crime contra a idéia de humanidade, ou seja, contra a idéia de que, além ou aquém de nossas diferenças religiosas, nacionais etc., somos semelhantes, membros de uma mesma espécie. Perseguir, exterminar uma população por sua diferença significa negar a existência da comunidade dos humanos, quebrar um pressuposto que talvez seja a melhor conquista de nossa cultura.
Pode-se dizer que um tribunal de "pares" julgou os nazistas porque quebraram uma regra da cultura à qual eles mesmos pertenciam. O mesmo vale para Milosevic e companhia.
A história de Saddam Hussein talvez seja um pouco diferente. O Iraque é uma criação da cultura ocidental: esquecidos de que a comunidade da espécie humana é uma invenção cultural, os ocidentais acreditaram que na Mesopotâmia, no caso, seria possível a coexistência, numa mesma nação, de diferenças étnicas (árabes e curdos) e religiosas (sunitas e xiitas).
Saddam topou o mandato, mas não seu pressuposto. Governou sua "nação" como um chefe tribal, ou seja, exclusivamente em prol de sua família e de sua tribo, a minoria sunita. Reprimiu e exterminou xiitas e curdos. Perseguiu os opositores como se não fossem gente. É um crime contra a idéia de humanidade. Mas esse crime vale na consciência ocidental moderna. Será que é essa a consciência de Saddam?
Não tenho nenhuma compaixão. Quer a gente condene ou não a intervenção americana no Iraque, não derramo lágrimas por um tirano. Desejo-lhe o destino que desejo a todos aqueles que ameaçam o que nossa cultura inventou de melhor.
Mas acho desastroso que esqueçamos o seguinte: a Justiça que o condenará não será uma Justiça absoluta, que não existe, mas a nossa, ocidental e moderna. O tribunal que se reunirá para julgá-lo será uma emanação de nosso expansionismo cultural. Não lamento que seja assim. Mas lamento que possamos, como acredito que acontecerá, negar mais uma vez a diferença e o conflito cultural que se expressarão no julgamento.
Gostaria, em suma, que nossa cultura abandonasse sua extraordinária pretensão de ser não uma cultura, mas a voz de alguma "natureza humana".
Ao que parece, os atos de Saddam serão avaliados por um tribunal iraquiano. Isso satisfaz nosso sentimento de justiça, pois ele será julgado por um júri de seus "pares" e "semelhantes", não é? Mas pense bem: num eventual júri iraquiano, sentarão xiitas (que, para Saddam, são uma "tribo" oposta e, portanto, menos "humana" do que a sua) e curdos (que, para ele, devem ser uma sub-raça exterminável com a mesma emoção que nós sentimos ao erradicar o mosquito da dengue).
O Ocidente verá, nesse julgamento, a obra de uma Justiça imemorial e universal. O acusado verá apenas um conciliábulo de inimigos que têm o direito de dispor de sua vida não em nome da Justiça, mas em nome da força, ou seja, por ele ter sido derrotado.
Aposto que manterá a expressão perdida do chefe tribal desfilando acorrentado atrás do Exército vencedor.
E, falando em expressão, a cara de Saddam descabelado e barbudo, de olhar apagado, enquanto um médico de luvas de látex examinava seus dentes e repartia seus cabelos procurando lêndeas e piolhos, parecia estranhamente familiar. Era o protótipo do mendigo árabe nas ruas de Paris.
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