04 março 2004
A arte do retrato
Terça -feira, em Nova York. Hoje, uma grande rodada de eleições primárias escolherá o candidato democrata à Presidência americana. É um bom dia para tomar café e discutir política no clube da Universidade Yale, na rua Vanderbilt: na sala principal, ao lado do bar, tronam os retratos dos ex-alunos da universidade que foram presidentes dos EUA, Gerald Ford, George Bush (o pai) e Bill Clinton. O retrato de George W. Bush (o filho), também ex-aluno, chegará no fim do mandato.
Os ex-presidentes são representados à paisana: nada de pingüim, nada de faixa, nem mesmo uma gravata com as cores da bandeira. Os retratos são acadêmicos e não fazem o meu gosto. Mas não é só isso: eles são pouco palatáveis por uma outra razão.
Todos nós temos, no mínimo, dois corpos: um corpo público ou político e um corpo privado. O primeiro é o corpo que apresentamos aos outros no exercício de nossas funções sociais: o enfermeiro e a médica de jaleco branco, o homem de negócios de terno escuro, o professor de paletó xadrez e gravata borboleta, a roqueira de calça apertada e cabelo punk. O segundo é o corpo que veste a camiseta do domingo, o couro e a lingerie da noite licenciosa ou a nudez dos enlaces amorosos. E é banal que tenhamos mais de um corpo público e mais de um corpo privado. Nota: aprendi a reconhecer a pluralidade de corpos que habitamos lendo (anos atrás, sorte minha) "Os Dois Corpos do Rei", de Ernest Kantorowicz (felizmente traduzido pela Companhia das Letras).
Mas voltemos ao clube nova-iorquino: os retratos dos três ex-presidentes são medíocres porque, apesar de não mostrarem explicitamente as fardas e os atributos do poder, eles conseguem a duvidosa façanha de apresentar corpos perfeitamente políticos. Quem se der o trabalho de contemplá-los receberá apenas esta mensagem: os três aqui retratados foram poderosos do jeito discreto e austero que convém a um ex-aluno de Yale. Para um olhar moderno, não basta; hoje, espera-se que qualquer retrato levante a suspeita de que, atrás do corpo público, há o enigma de desejos privados. Estamos interessados em indivíduos que sejam gente, não em fardas, que nos parecem sempre vazias.
Aliás, é por isto que todos os candidatos exibem filhos, mulheres e parentes: querem nos mostrar que eles têm um corpo privado, como nós. Claro, há corpos privados que a opinião média julga incompatíveis com certos corpos públicos: será que aceitaríamos um presidente que, à noite, vestisse calcinha e cinta-liga para encontrar seu amante? Provavelmente não, mas é indubitável que desconfiaríamos de um sujeito que quisesse nos convencer de que seu corpo é inteiramente político e público.
Por essas razões, um retrato que apresenta só o corpo público do retratado é, aos nossos olhos, simplesmente ruim.
Acabo de ler "Portraits, A History" (retratos, uma história), de Andreas Beyer. O original em alemão saiu em 2002; a tradução em inglês é do fim do ano passado.
O livro, que é maravilhosamente ilustrado e pesa seis quilos, narra de maneira magistral a evolução da arte do retrato.
Beyer confirma esta tese estabelecida em 1860 por Jacob Burkhardt (em "Cultura do Renascimento na Itália"): até o começo do Renascimento (primeiras décadas do século 15), a pintura ocidental não produziu retratos de indivíduos. Para os gregos, os romanos e os homens medievais, retratar significava mostrar não a unicidade do sujeito retratado, mas sua função social, seu status, seu lugar na hierarquia do poder. Por exemplo, o retrato de um imperador romano não se preocupava com a reprodução dos traços distintivos de sua pessoa, mas tentava criar uma imagem que expressasse a majestade da autoridade absoluta, da sabedoria e talvez do sagrado. Reconhecer o imperador no retrato significava reconhecer seu poder, muito mais que suas feições.
A partir do século 15, os retratos começam a insistir na singularidade dos sujeitos retratados. A mudança se explica assim: a modernidade valoriza o indivíduo mais do que a comunidade. Portanto, espera-se que o retrato moderno revele a verdade do corpo privado, único e inconfundível. A função social do sujeito (seu corpo público), no melhor dos casos, é uma espécie de mentira necessária.
No retrato antigo, os atributos da função eram mais importantes que os traços singulares do sujeito porque, antes da modernidade, o sujeito parecia ser definido perfeitamente (ou quase) por sua função social. Se, ao retratar César, mostrei que ele é imperador, revelei o essencial de sua pessoa. Ao contrário, se, ao retratar um presidente de hoje, eu só conseguir mostrar que ele é presidente, o retrato será propriamente um fracasso.
Para nós, modernos, a função social não resume nem define o indivíduo que a preenche. Quando contemplamos um retrato, o que nos interessa é aquela parte do sujeito retratado que não cabe na farda do corpo público.
A Antigüidade era o reino das fardas. O homem clássico conhecia uma (suposta) paz de espírito porque sua função na ordem social lhe bastava para responder à pergunta: "Quem é você?".
A modernidade é o mal-estar produzido pela descoberta de que um corpo privado se agita atrás das fardas, que não definem mais nossa pessoa. A esse descompasso devemos nossa pequena liberdade.
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