Na semana passada, estreou "Peixe Grande", de Tim Burton.
O filme é maravilhoso e tocante. Conta como, de um pai para o filho, transmite-se um bem precioso: a paixão pela vida.
A história é a seguinte: um filho passa a infância boquiaberto, escutando o pai, que não pára de narrar suas aventuras mirabolantes. Ao tornar-se adulto, o filho não agüenta mais: as narrações paternas lhe parecem fanfarrices. Quando o pai está próximo da morte, o filho volta para casa, decidido a entender o tamanho e a razão das "mentiras" paternas.
Difícil dizer se as histórias contadas pelo pai eram mentiras ou não. Mas tanto faz: o que o filho descobre é outra coisa e mais importante. De que se trata?
Para termos vontade de viver, não basta dispor do famoso instinto de autopreservação. Claro, reagimos imediatamente a situações de perigo. Se o corrimão da sacada balançar de repente, evitaremos cair no vazio jogando nosso peso para trás. Fato notável, o reflexo funcionará mesmo se estivermos deprimidos e prestes a cometer suicídio, de revólver na mão.
Essa contradição sugere o seguinte: o instinto de autopreservação não se confunde com a vontade de viver. O gosto pela vida não vem com o pacote genético: é uma paixão que nos é transmitida de maneiras diferentes, segundo a cultura, a época e a família em que nascemos.
Os pais podem inculcar no filho a vontade de viver para que o rebento realize as ambições nas quais os genitores fracassaram: "Viva, filho, para nos dar uma segunda chance". Na mesma linha, encontra-se: "Viva e reproduza-se para que a família continue", "viva para honrar os preceitos dos antepassados ou da religião" e "viva feliz para mostrar ao mundo que nós, seus pais, fizemos um bom trabalho". Em todos esses casos, a vontade de viver é transmitida como um mandato que se justifica por razões externas à própria experiência da vida.
Ora, sou pai de três rapazes. Gostaria de lhes transmitir uma paixão pela vida que não dependesse da realização de sonho algum, ainda menos de um sonho meu. Gostaria que eles encontrassem sua razão de viver não alhures (numa obrigação ou mesmo nos grandes princípios que dirigem suas ações), mas na própria experiência da vida que levam, em seus momentos felizes ou tristes, jocosos ou duros.
Mas como transmitir uma paixão pela vida em si?
O pai de "Peixe Grande" responde: para amar a vida, é preciso saber romanceá-la, não necessariamente devaneando que cada peixe pescado seja Moby Dick, mas vivendo a vida como uma aventura maravilhosa.
É impossível sair do filme sem pensar no pai da gente. Meu pai não gostava de contar em público suas façanhas. No entanto, não parava de maravilhar-se com a vida.
Até os meus sete ou oito anos, a cada vez que meu pai atendia o telefonema de um de meus colegas da escola, ele declarava, seriíssimo: "Só um instante, Contardo está preparando a comida para a girafa" ou "Vou ver se pode, estava dando banho no hipopótamo, talvez tenha terminado".
Mais de uma vez, tive que lidar com amigos furiosos, convencidos de que eu escondia um zoológico em casa e inconformados com meu egoísmo. Por que não permitia que os amigos brincassem com meus bichos?
Na época, eu detestava essas brincadeiras do meu pai. Hoje, acho que ele tentava me transmitir um pouco de sua capacidade de temperar a existência com pitadas de fantasia.
Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que sua caligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe. Às vezes, eu ficava escutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a transformação que as palavras do diário impunham a acontecimentos que eu tinha presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava uma vasta produção teatral cujo tema maior era sempre, aliás, o seu amor pela minha mãe.
Por exemplo, num vilarejo perto de Milão, numa tarde de domingo, com um frio de cão e uma chuva de afogar rãs, meu pai procurava o sacristão fantasma que talvez tivesse a chave de uma capela meio destruída, onde, segundo constava, sobravam os restos de um afresco do século 15. Minha mãe devia estar de saco cheio tanto quanto nós.
Mas meu pai ditaria esse transtorno como o encontro encantado do céu cinzento de Lombardia com o sorriso de minha mãe (que ele era o único a ter entrevisto), com a dedicação do sacristão (que, provavelmente, maldisse esse erudito que aparecia num domingo de inverno), com o sublime gesto do pintor (do qual gesto não sobrava quase nada) e, enfim, com o tormento e a esperança dos soldados que, num momento da Segunda Guerra, deviam ter encontrado amparo na capela, cujos muros eram grafitados por balas de metralhadora. Tudo isso convergiria para compor um momento mágico nas páginas do diário e, de fato, na vida dele.
Quando meu pai morreu, fiquei com seus diários. Leio de vez em quando. Não procuro informações sobre sua vida, apenas o segredo de sua paixão de viver e de amar.
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