Na semana passada, pesquisadores da Universidade Nacional de Seul, na Coréia do Sul, anunciaram ter conseguido uma proeza científica e técnica.
Eles convenceram células quaisquer de um organismo humano a comportar-se como células-tronco originárias, ou seja, como células não diferenciadas, prontas a transformar-se em todos os tecidos dos quais o organismo possa precisar.
As promessas terapêuticas da experiência são imensas. Um infartado, por exemplo, poderia implantar em seu coração células dispostas a regenerar o órgão ferido.
Claro, a experiência acarreta a possibilidade de que um dia consigamos clonar um sujeito humano a partir de qualquer uma de suas células.
Conseqüência: ninguém comentou a experiência sem manifestar preventivamente sua recusa da clonagem.
Cada vez que se fala em clonar seres humanos, primeiro declaramos nossa oposição. A clonagem tem esse mérito: graças a ela, por uma vez, todos parecemos concordar. A unanimidade e o caráter peremptório das reações me levam a perguntar: com quem estamos brigando?
Não gostamos da idéia de que seja possível reproduzir-se sem passar pelos prazeres e desprazeres do sexo, do amor e do casal. Mas onde está a novidade trazida pela clonagem? A instabilidade dos casamentos já tornou banal que haja homens e mulheres criando filhos sem parceiro; para ter uma prole, casais homossexuais recorrem a barrigas de aluguel ou ao esperma de doadores anônimos; o sexo virtual é, para alguns, a modalidade preferida de relacionamento erótico-amoroso: seus adeptos devem renunciar a maternidade e paternidade?
Desaprovamos o projeto de produzir um ser humano que teria exatamente a mesma carga genética de seu (único) genitor: "O que é isso de querer se duplicar? Cara, qual é a sua, está com medo de morrer?". É curioso: a mesma pergunta poderia ser colocada à grande maioria dos casais que se reproduzem segundo o cânone estabelecido. Já faz mais de dois séculos que fazemos filhos na esperança de corrigir nossa intolerável mortalidade e os amamos por eles representarem nossa segunda chance: quem sabe eles realizem os sonhos que não alcançamos no decorrer de nossa vida.
Alguns se indignam porque, clonando, estaríamos brincando de Deus; clonar, eles notam, não é "natural". Certo, mas tampouco é natural erradicar a peste bubônica, inventar a energia nuclear, modificar o tamanhos dos seios e transplantar rins.
Outros levantam o espantalho da eugenia nazista. Dizem que, se pudermos escolher, soltaremos nossos piores preconceitos, planejando uma raça de loiros de olhos azuis, altos, fortes e livres de estigmas hereditários. Fora o fato de que nem todos temos os mesmos preconceitos (há quem prefira corpos morenos e cabelos encaracolados), será que não estamos já engajados numa eugenia de bom tamanho? Para que servem os exames pré-conjugais? E o acompanhamento pré-natal? E os exames do líquido amniótico, sistemáticos em mulheres grávidas acima dos 40 anos?
Outros ainda se queixam de que a clonagem comprometeria nossa unicidade. Mas a queixa manifesta sobretudo nossa ciumenta vontade de sermos inconfundíveis, pois a identidade de patrimônio genético não ameaça a singularidade dos sujeitos: a vida já se encarrega de diferenciar os gêmeos.
Em suma, somos contra a clonagem de seres humanos. Certo, mas é bom reconhecer que essa oposição apenas renova conflitos ordinários em nossa cultura.
Voltemos à experiência sul-coreana. Os fundamentalistas religiosos (de Bush ao Vaticano, passando pelos evangélicos) desaprovam e querem proibir: consideram que, seja qual for o estágio de desenvolvimento de um embrião, ele já é uma vida humana. Destruí-lo para extrair células-tronco seria, para os fundamentalistas, a mesma coisa que matar um sujeito para transplantar seu coração para outro.
Ora, justamente o cristianismo nos convida a descobrir e a respeitar a humanidade em nossos semelhantes. Para que um embrião que contém uma centena de células-tronco me apareça como meu semelhante, é preciso que minha definição do humano seja biológica. Seria humana qualquer existência, em qualquer estágio, com a condição de que pertencesse à espécie. Por esse caminho, por que não chorar pelos espermatozóides sacrificados, não digo nas camisinhas e nas masturbações, mas na própria hora da fecundação? E por que não pedir que as mulheres enterrem com ritos religiosos cada óvulo expulso na menstruação?
Fora de brincadeira, vale a pena notar o caráter pós-moderno dessa posição moral aparentemente conservadora. Veja bem: se a humanidade é definida por via biológica, então o bem supremo é a sobrevivência. E nenhum valor moral pode situar-se acima do bom funcionamento dos órgãos. Há uma curiosa cumplicidade entre a idéia de que um embrião é nosso semelhante e a idéia de que é mais moral fazer regime balanceado do que ler o jornal tomando café. Se o Paraíso obedecer ao Vaticano, os mártires cristãos que se cuidem: afinal, eles foram para a morte "só" para defender uma idéia.
Quanto a mim, prefiro reconhecer a humanidade de meus semelhantes nas faíscas da emoção, do pensamento e, sobretudo, da dúvida, que talvez seja a atitude mais humana de todas.
Aliás, quando encontro sujeitos que só têm certezas (como, neste caso, os que se indignam com a experiência coreana), eles me parecem ser apenas embriões de sujeitos.
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