Na semana passada, assisti a alguns capítulos da novela das oito da Rede Globo, "Celebridade".
Um anúncio da Honda voltava seguidamente, intercalado na novela. No sábado, quando o anúncio não apareceu, senti sua falta: cadê a propaganda da Honda?
Era um breve filme em que um carro, rápido, altivo e solitário, percorria as ruas de uma cidade; o turbilhão produzido por sua passagem levantava as saias curtas e vaporosas de mulheres maravilhosas. O roteiro parecia ditado pelo espírito da "Motivational Research" (pesquisa das motivações) do pós-guerra americano.
Os estudos das motivações dos consumidores foram, se não introduzidos, no mínimo popularizados, nos anos 50, por psicólogos de formação psicanalítica.
O mais famoso foi o dr. Ernst Dichter, que nasceu em Viena e, criança, residiu perto da casa de Freud (curiosidade que não prova nada). Ele foi psicanalisado por Wilhelm Steckel e demonizado por Vance Packard, em 1957, num clássico da sociologia de esquerda americana, "The Hidden Persuaders" (os persuasores ocultos). Dichter saiu de Viena a tempo, passou pela França e fugiu para os EUA antes da invasão nazista. Nos EUA, ele fez fortuna no marketing recorrendo à psicanálise para apontar as razões inconscientes das escolhas dos consumidores.
Em 1995, visitei sua viúva, que vivia em Westchester, ao norte da cidade de Nova York. Tive acesso aos arquivos de Dichter e consegui uma cópia de sua tese de doutorado, que, confesso, ainda não estudei. Queria entender qual era a visão da subjetividade pelo dr. Dichter. Deixando de lado a hipótese do simples oportunismo, perguntava-me: qual otimismo de imigrante neo-americano podia levar o dr. Dichter a pensar que o uso comercial das motivações inconscientes não constituísse uma falha ética, mas talvez contribuísse à formação de uma sociedade de consumo "feliz"? Mas não é esse o tema de hoje.
Ao meu ver, os melhores trabalhos do dr. Dichter não são propriamente pesquisas (embora ele se servisse de entrevistas e grupos de foco). Eles são exercícios de interpretação livre. Por exemplo, num relatório famoso, ele sugeriu a uma fábrica de carros que as concessionárias colocassem sempre na vitrina um conversível, enquanto o carro de quatro portas, apesar de ser o modelo mais vendido, ficaria atrás. Dichter se valia do seguinte argumento (resumido): os homens (na época eram eles que compravam) sempre entram num lugar atrás de uma amante, embora acabem levando uma confortável esposa. Outro relatório salientava a relação íntima do sabonete com o corpo e propunha que a propaganda de sabão se baseasse na sensualidade da espuma e não na virtude higiênica.
Hoje, esses achados parecem ingênuos: como o dr. Dichter conseguia ser pago para "descobrir" trivialidades? No entanto, é preciso lembrar-se de que, antes da Segunda Guerra, a propaganda consistia, em geral, na apresentação do produto, acompanhada da lista de suas propriedades, eventualmente milagrosas. No marketing dos anos 50, era inovadora a idéia de que o consumidor teria duas motivações básicas -poder social e sucesso sexual- e que, portanto, uma propaganda eficiente deveria relacionar o produto a uma delas ou às duas.
Dichter podia dizer-se freudiano, pois Freud teria concordado: as motivações humanas cabem em duas categorias (relacionadas), sucesso social e sexual.
O que mudou desde a época de Dichter? O que fez que, aos poucos, ele fosse esquecido? As motivações não mudaram, mas mudou seu estatuto: elas não têm mais nada de inconsciente nem de vergonhoso ou escondido.
A propaganda da Honda que cativou minha atenção era apresentada, como já disse, no meio de "Celebridade". Na novela, as motivações explícitas de vários protagonistas (motivações que ninguém estranha) são as mesmas que, segundo Dichter, animam o consumidor potencial. De uma certa forma, a propaganda da Honda (deve ser por isso que senti sua falta no sábado) era uma síntese (parcial, claro) da novela.
Meio século depois de Dichter, parecemos continuar exatamente como ele supunha que fôssemos: consumidores sedentos pelo prestígio que as mercadorias conferem e assanhados. A única (e notável) diferença, aparentemente, é que, além de consumidores e assanhados, somos assumidos: sem grande resistência, concordamos com a suposição de Dichter.
Talvez o psicólogo vienense-americano pensasse que, revelando as motivações básicas do sujeito moderno, ele estivesse fazendo uma obra civilizadora, produzindo uma espécie de terapia coletiva. Afinal, graças a ele, motivações inconscientes se tornariam conscientes. Não é isso que se espera da psicanálise?
Pois é, a psicanálise como "ciência" das motivações é mesmo trivial: duas ou três pulsões, uma corrida atrás do desejo (sobretudo o dos outros) e por aí vai. Só que a psicanálise não é uma ciência das motivações, mas uma arte de explorar (e modificar) os meandros pelos quais cada um constrói uma existência singular (sofrível ou sofrida) negociando como pode com as tais motivações básicas triviais.
Sobra, portanto, uma pergunta: se o que nos define não é a banalidade das motivações, mas nossa capacidade de inventar a vida negando, deslocando e transformando as ditas motivações, então por que nos espelhamos docilmente nas idéias de Dichter? Por que aceitamos ser definidos sumariamente por cobiça e luxúria?
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