17 novembro 2005

O mundo como nação

O Perserec (Personnel Security Research, em Monterey, Califórnia) é um centro de pesquisa em segurança empresarial e institucional.

Acabo de ler um relatório recente do Perserec: "Technological, Social, and Economic Trends that are Increasing U.S. Vulnerability to Insider Espionage" (tendências tecnológicas, sociais e econômicas que aumentam a vulnerabilidade dos EUA à espionagem interna; www.fas.org/sgp/othergov/ dod/).

O relatório começa salientando os aspectos do mundo atual que facilitam o trabalho do espião: possibilidade de digitalizar as informações, ampliação do mercado das informações (mais concorrentes ou países querendo comprar), internacionalização do comércio e da ciência com aumento de contatos do pessoal com concorrentes e estrangeiros, expansão da internet (facilidade da transmissão e do anonimato na correspondência).

A seguir, são examinadas as motivações dos espiões. Constata-se que, cada vez mais, os americanos vivem crises financeiras pessoais produzidas por seus hábitos "agressivamente consumistas". Talvez por causa dessas crises, a prática compulsiva do jogo está aumentando. As dívidas são fontes prováveis de motivação para a espionagem.

Enfim, o texto chega às três questões seguintes.

1) Diminuiu a lealdade institucional. As empresas obedecem brutalmente às necessidades do mercado, racionalizando, transferindo, demitindo. Os funcionários mudam de empresa segundo seu interesse econômico e suas ambições. Acaba o mito da empresa como família e a sensação de pertencer a uma comunidade de trabalho.

2) Fato relevante para as repartições públicas, um número crescente de americanos tem laços étnicos com outros países. Isso sempre foi o caso nos EUA, mas a facilidade das comunicações faz com que o imigrante não seja obrigado a queimar os barcos. Telefonar "para casa" (justamente, qual "casa"?) sai de graça ou quase, e viajar a cada ano para o país de origem está ao alcance da pequena classe média. Conseqüência: nos novos imigrantes, o sentimento de pertencer à nação americana pode ser dúbio e conflituoso. A permissão de manter uma dupla nacionalidade é mais a expressão do que a causa dessa situação.

3) Um número crescente de americanos vêem o mundo como uma sociedade global, de pessoas e grupos interdependentes, e não como um teatro em que se afrontariam "nações". Um cidadão pode se tornar espião para servir o interesse superior da "comunidade mundial". É citado o caso de Ana Montes, uma analista do serviço de informações do Ministério da Defesa que transmitiu dados sigilosos para Cuba. Montes não era comunista nem filocubana, mas se sentia "moralmente obrigada" a agir para "promover a tolerância e a cooperação em nossa única pátria, que é o mundo".

Sem querer, o relatório mostra que um suposto mal-estar da dita pós-modernidade (o sentimento de não pertencer a quase nada) é apenas a realização de um dos maiores sonhos da modernidade. Explico. Uma grande idéia moderna diz que, se nós nos concebermos como agentes econômicos (como produtores, trabalhadores etc., e não como membros de tribos e clubes), passaremos a reconhecer a igualdade de todos: a espécie humana será nosso povo e o mundo, nossa pátria.
Esse sonho atravessa tanto o iluminismo francês quanto o anglo-saxão. A idéia marxista do internacionalismo proletário não tem outra origem.

Pois bem, ao que parece, o iluminismo está funcionando. Aos poucos, a espécie humana em sua diversidade começa a nos aparecer como um povo só e o planeta como uma única grande nação.
É normal que isso incomode a segurança nacional de qualquer país e, no caso, a dos EUA, mas, de uma certa forma, o que está acontecendo é um efeito do próprio projeto americano. As Américas, esquecendo seus pecados originais (extermínios dos índios e escravatura), prefiguram o sonho moderno do mundo como pátria, por serem o lugar onde vivem sociedades compostas pela imigração de etnias, fés e passados diferentes.

Estamos longe do declínio final das nações. Há os que protegem sua identidade de grupo semeando bombas. Há os que erigem barreiras comerciais para privilegiar sua nação. Há os que seguem acreditando nas seleções nacionais, embora sejam compostas por jogadores que vivem e criam filhos em vários outros países. E, claro, há os que confundem seu país com o mundo-pátria (como se já existisse) e se arrogam o direito de serem os gendarmes de todos.

No entanto, ao ler o relatório, parece que a verdadeira crise que ameaça hoje o "império" é a realização de seu próprio sonho: a nação composta por sujeitos do mundo inteiro se identifica com um mundo em que a idéia de nação perde sentido. Com isso, ela pode se desfazer como nação.

Nota. Sobre a crise em curso na França, talvez reste prever que ela não encontrará solução na integração "nacional" dos jovens de ascendência árabe. Pelo passivo histórico e pelas paixões em jogo (décadas de retórica da nação árabe e séculos de retórica da nação francesa), a crise só poderá ser resolvida na perspectiva (longínqua) de um mundo que seja a pátria de todos.

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