24 novembro 2005

Religião: por quê ou para quê?


Em 1970, na Universidade de Genebra, participei de um seminário sobre as provas da existência de Deus segundo são Tomás.
Continuávamos discutindo noite adentro. A existência de Deus não era o tema do debate: ela nos parecia depender de um ato de fé, e fé não se discute. O objeto de nossas conversas era a religião.
Alguns, leitores de Marx, viam a religião como um instrumento de poder: "ópio do povo", destinado a acalmar a massa dos oprimidos com a visão de um futuro em que a justiça reinará entre puros espíritos.

Outros, leitores de Freud, viam a religião como um jeito de instituir a repressão sem a qual a vida social seria impossível ou, então, como um sistema de crenças destinado a atenuar o desamparo humano, dotando o mundo, a história e a vida de um sentido. Eles notavam que a repressão é sempre maior do que é preciso (para não matar e roubar, aceito também me proibir de transar fora do casamento). Lembravam também que, quanto ao sentido, seu excesso é mais daninho do que a angústia que ele cura (extermino os heréticos para que permaneça incontestada minha versão da origem e do fim do universo).

Enfim, "marxistas", "freudianos" ou independentes, todos tentávamos responder à pergunta "religião para quê?", como se o "para quê" resolvesse a questão do "por quê". É um vício da razão moderna: parece que, se descobrirmos para que serve uma coisa e quem se beneficia com ela, saberemos qual é sua origem e sua causa. Mas nem tudo o que existe é fruto de uma intenção, malévola ou não.

Lembrei-me desses debates noturnos lendo o artigo que Paul Bloom, psicólogo da Universidade Yale, publica no número de dezembro da "Atlantic Monthly", "Is God an Accident?" (será que Deus é um acidente?). O artigo retoma o livro recente (2004) de Bloom, "Descartes" Baby: How the Science of Child Development Explains What Makes Us Human" (o bebê de Descartes: como a ciência do desenvolvimento infantil explica o que nos torna humanos).

Bloom trata de nosso dualismo, ou seja, de nossa crença "espontânea" na idéia de que nossa subjetividade seja separada de nosso corpo. O fato é que, mesmo se sou materialista, falo sem hesitar que "tenho" (e não que "sou") meu corpo, como se "eu" fosse uma coisa bem diferente dos 72 kg de matéria que carrego habitualmente comigo.

Isso, afirma Bloom, não é efeito de uma crença. Uma série de pesquisas mostram que crianças pequenas (sem sistemas organizados de crenças) enxergam a vida do corpo e a vida da mente como coisas separadas. Eis um exemplo. Um grupo de crianças assiste a um filme em que um crocodilo devora um ratinho. Depois disso, o pesquisador coloca perguntas sobre as funções corporais e as funções psicológicas (subjetivas) do ratinho, que obviamente está morto. "Agora que o ratinho morreu, ele ainda precisa ir ao banheiro?" "Claro que não", dizem as crianças. "Será que sua cabeça funciona?" "Claro que não." "Será que ele ainda sente fome e vontade de voltar para casa?" Pois é, "claro que sim", dizem as crianças.

Bloom observa: não somos dualistas porque acreditamos (religiosamente) numa vida além da morte, mas, ao inverso, acreditamos numa vida além da morte porque somos dualistas (ou seja, porque concebemos espírito e corpo como coisas separadas). Se não coincido com meu corpo, por que eu não sobreviveria quando ele morrer?

Agora, o que será que nos faz conceber espírito e corpo como coisas separadas? Bloom apresenta pesquisas e exemplos clínicos que mostram o seguinte: nossa capacidade de compreender o social (os outros, nossos semelhantes) desenvolve-se por um caminho diferente e separado do caminho pelo qual nos tornamos capazes de entender o mundo físico e material. É como se construíssemos e usássemos dois computadores distintos: um computador para entender, por exemplo, a causalidade mecânica e outro computador para entender as intenções humanas.

Nenhum terapeuta se oporá a essa idéia: há condições (a síndrome de Asperger, por exemplo) em que um sujeito pode sofrer de um déficit doloroso de compreensão das relações humanas e, ao mesmo tempo, ter uma perfeita compreensão do mundo físico e até ser um cientista de valor.

Último argumento de Bloom: de nossos dois "computadores", um se desenvolve mais e invade o terreno do outro. É o "computador" para compreender nossos semelhantes, que acabamos usando também na hora de entender a natureza. Aqui, as experiências mostram com quanta facilidade os humanos atribuem intenções ao mundo inanimado. De fato, todos ouvimos dizer que a Aids seria um "flagelo divino" contra homossexuais, drogados e promíscuos ou que o tsunami seria uma "vingança" da natureza.

Conclusão de Bloom: tendemos a ser religiosos (a acreditar numa vida além da morte, num sentido para o mundo e numa intencionalidade suprema) como efeito de nosso desenvolvimento mental e cognitivo.

Tudo isso não nos diz se Deus existe ou não nem se existe ou não vida após a morte. Mas, por uma vez, fato notável, a religiosidade é explicada não por seu uso ou por sua finalidade, mas como efeito de nossa constituição psíquica.

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