15 dezembro 2005

Filmes para toda a família

Estão em cartaz dois filmes ótimos para as férias, "Harry Potter e o Cálice de Fogo", de Mike Newell, e "As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa", de Andrew Adamson.

O filme de Adamson leva ao cinema uma das sete "Crônicas de Nárnia", escritas por C. S. Lewis nos anos 50 do século passado. O filme de Newell corresponde ao quarto volume das aventuras de Harry Potter, escritas por J.K. Rowling. Os dois filmes são encantadores, como os escritos que os inspiram.

O "Cálice de Fogo" (talvez o melhor "Harry Potter" até agora) foi elogiado, em particular, por "humanizar" Harry e seus colegas. Já com 14 anos, o jovem herói, por mais que seja mago, conhece as dores da adolescência. Por exemplo, envergonhado na hora de convidar a menina de quem ele gosta, acaba levando para o baile uma substituta. No baile, ele fica jogado numa cadeira como todos ficamos aos 14 anos: comentando sardonicamente a dança dos outros, com medo de termos ares de criança se nos aventurássemos na pista.

Por causa disso, alguns críticos afirmaram que "O Cálice de Fogo", magia à parte, é um filme sobre a adolescência. Concordo, mas não só pelas atrapalhações de Harry, que despertam em nós sorrisos condescendentes.

No filme, quatro jovens são encorajados a competir em provas desesperadoramente perigosas. Trata-se de um jogo, mas, para os concorrentes, a questão é de vida ou morte.

Ora, a maior aspiração de qualquer adolescente é que sua existência (não só seu futuro) seja levada a sério e que as aventuras de seu dia-a-dia não sejam consideradas por nós como percalços engraçados de um tempo protegido de formação. Os adolescentes, aliás, não param de inventar atos e riscos extremos para sacudir nossa condescendência e forçar nosso respeito. Melhor ainda se, como no filme, os ditos atos e riscos forem impostos por nós: os jovens saberiam, enfim, quais provas são exigidas para que eles se tornem adultos aos nossos olhos.
Pois é, se nossos adolescentes tivessem mesmo que encarar dragões, eles talvez não precisassem de drogas.

Mas vamos a "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa". O filme suscitou uma salva de críticas ideológicas, porque a história seria uma alegoria do triunfo do cristianismo.
C. S. Lewis era cristão (convertido tardiamente pelo amigo Tolkien, o autor de "O Senhor dos Anéis"). De fato, na história do leão Aslam, há elementos que evocam a história de Cristo. Mas em termos: para mim (e para vários outros), a "loucura" da mensagem cristã fala do sacrifício de um humilde, de um cordeiro que resgata a todos. Nada a ver com um leão que reúne um exército para enfrentar o mal.

Alguns comentadores não se preocuparam com essa discrepância e não se perguntaram de onde ela vem. Preferiram apresentar Lewis como um conselheiro espiritual de George W. Bush: sua visão de um cristianismo guerreiro coincidiria com o espírito dos falcões que promoveram a invasão do Iraque como mais uma cruzada.

Por gratidão pelo prazer que a leitura das "Crônicas" me proporcionou na infância, devo defender Lewis desse disparate.

Lewis escreveu uma deliciosa autobiografia, "Surprised by Joy: the Shape of My Early Life" (surpreendido pela alegria: a forma do começo de minha vida), na qual ele narra o caminho de sua conversão.

Sua paixão, desde a infância, foi o mundo mágico da aventura. Da vasta e excelente produção de Lewis crítico e historiador da literatura da Idade Média e da Renascença, conheço dois livros, talvez os principais: "The Allegory of Love" (a alegoria do amor), de 1936, e "The Discarded Image" (a imagem descartada), de 1964. Ambos celebram e festejam a possibilidade (que explode na literatura da Renascença italiana com Ariosto, Boiardo e Tasso) de narrar o maravilhoso, além da vida real e além do mistério da fé.

É por causa dessa paixão pelo maravilhoso que Lewis se converteu: adotou o cristianismo porque viu nas verdades da fé mais uma história fantástica, que tinha a vantagem de poder ser verdadeira.

É injusto dizer que Lewis escreveu as "Crônicas de Nárnia" como uma alegoria do cristianismo. Ao contrário, ele se tornou cristão porque a história de Cristo lhe parecia tão fantástica quanto a história dos Cavaleiros da Mesa Redonda (ou a do leão Aslam, salvador de Nárnia).

Na hora de criticar, a ideologia é má conselheira: os mesmos críticos que quiseram enxergar em Lewis um falcão com espírito de cruzado, esqueceram-se de notar que algo, nas "Crônicas", pode mesmo incomodar nosso espírito libertário. Esse "algo" não é a alegoria do cristianismo, mas a felicidade um pouco babaca com a qual os animais de Nárnia, uma vez libertados da feiticeira, apressam-se a aclamar novos reis, sem pensar nem um instante que eles poderiam se governar sozinhos. O cenário dos mundos encantados é quase sempre a sociedade tradicional, com seu respeito incontestável por hierarquia e autoridade.

Seja como for, deleitem-se com os filmes, pois ambos expressam um anseio que todos conhecemos (não só os adolescentes): o anseio de encontrar provas maravilhosas que nos testem.

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