23 fevereiro 2006

A vergonha de ser pobre

Em princípio, a vergonha que sentimos por um ou outro de nossos atos não nos exclui da convivência social. Ao contrário, ela nos convida a resgatar nossa dignidade com novas ações e a voltar para o mundo de cara lavada.

Mas há uma outra vergonha, radical, que pode nos afastar da coletividade, sem retorno: é a vergonha de quem somos, não de algo que fizemos.

Os crimes infamantes, "hediondos", por exemplo, são atos que jogam uma sombra sinistra e quase definitiva sobre o réu. Nossa sociedade parece pedir, nesses casos, uma vergonha radical, que afete não tanto o crime quanto o próprio "ser" do culpado. Um protótipo, imortalizado pelo romance de Nathaniel Hawthorne, "A Letra Escarlate", é a punição da adúltera por uma letra inscrita em seu corpo; outro é o costume islâmico de cortar a mão de quem rouba. Em ambos os casos, a punição é uma marca indelével: a vergonha não é apenas relativa aos atos, ela é um estigma duradouro que identifica e exclui quem errou.

Mas não é preciso procurar tão longe: as dificuldades de qualquer ex-presidiário que queira refazer sua vida mostram que, mesmo na administração ordinária de nossa justiça, uma vergonha radical e excludente pode ser parte da punição.

Acaba de sair em livro de bolso "Hiding from Humanity: Disgust, Shame, and the Law"(escondendo-se da humanidade: desgosto, vergonha e a lei), de Martha Nussbaum, professora de ética da faculdade de direito da Universidade de Chicago (a primeira edição é de 2004). Nussbaum mostra que uma vergonha radical ainda produz exclusão nas sociedades modernas. Há a vergonha dos criminosos que pagaram sua dívida com a sociedade, mas continuam manchados por uma aura de infâmia, assim como há a vergonha dos negros, das minorias sexuais, dos incultos, dos miseráveis, dos gordos ou dos fumantes.

A crítica de Nussbaum (que retoma um clássico da sociologia dos anos 60, "Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada", de Erving Goffman) baseia-se num grande princípio da moral moderna: nossa vida é livremente inventada e reinventada por nossos atos, portanto, nossos atos podem ser punidos e envergonhados, mas nunca deve ser envergonhada e estigmatizada nossa "essência".

Há também uma razão pragmática para criticar a vergonha radical e excludente. James Gilligan, professor de psiquiatria da universidade Harvard, pesquisa os efeitos sociais da vergonha que exclui. Um bom resumo de seu trabalho é o artigo "Shame, Guilt, and Violence" (vergonha, culpa e violência), publicado num número especial sobre vergonha de "Social Research", vol. 70, nº 4, 2003 (www.findarticles.com/p/articles/
mi-m2267/is-4-70/ai-112943739
).

Desde 1975, as pesquisas de Gilligan mostram que a maioria dos atos criminosos encontram sua motivação no sentimento de humilhação. A perda de dignidade ameaça o sujeito com a perspectiva de uma morte mais cruel do que a morte de seu corpo: uma morte simbólica, que torna vergonhosa sua simples existência. Essa vergonha radical evoca o desamparo de um recém-nascido que não fosse acolhido no mundo por amor algum.

Para Gilligan, a miséria, em si, não é nunca causa da violência, mas a coisa muda se ela for acompanhada pela exclusão social: a vergonha de ser excluído fala mais alto do que os freios morais. Qualquer ato é possível na tentativa desesperada de exigir o respeito dos outros: "Se eles percebem que não têm meios não violentos de se tornarem independentes e de tomar conta de si mesmos (habilidades, educação e emprego), a atividade e a agressividade estimuladas pela vergonha podem se manifestar em comportamentos violentos, sádicos e mesmo homicidas".
Conseqüência: um sistema penal humilhante, que desacate a humanidade de seus condenados, só produz neles a necessidade de voltar a impor respeito pela violência de seus atos.

Outra conseqüência: uma coletividade pode conviver em paz apesar de grandes diferenças sociais e econômicas, mas à condição que ela não exclua e envergonhe uma parte de seus membros.

Ora, na semana passada, concluí minha coluna observando o seguinte: uma "elite" insegura, decidida a confirmar sua legitimidade ostentando e esbanjando, transforma a pobreza do povo em motivo de vergonha e exclusão, ou seja, induz o povo a sentir vergonha de sua própria condição.

A conclusão fica com Yuri Lotman, o pai da ciência dos signos, num breve ensaio, "Semiótica dos Conceitos de Vergonha e Medo", que me foi oportunamente lembrado por uma leitora, Ude Baldan (em português, o texto está nos "Ensaios de Semiótica Soviética""). Lotman afirma que é possível organizar uma coletividade ao redor do medo (medo da punição, medo dos invasores, medo da violência etc.), mas seria uma coletividade animalesca: uma sociedade autenticamente humana é organizada pela freio moral garantido pela vergonha.

Pois bem, quando uma "elite" desprovida dessa vergonha exclui e humilha o povo, a coletividade se organiza do jeito que sobra: pelo medo da violência de seus excluídos.

16 fevereiro 2006

Privilegiados sem-vergonha

Na modernidade , os privilegiados não são príncipes nem condes. Eles devem seu status à sua riqueza e, fato crucial, ao olhar dos outros: "Pertenço à classe A ou B pela minha renda, mas essa não significaria nada se as classes C, D e E não me reconhecessem como privilegiado".

A exigência de reconhecimento torna nossa vida um pouco fútil, mas, em compensação, todos podemos melhorar nossa condição: é só dar duro (ou ter sorte) e exibir nosso sucesso aos outros.
De fato, essa melhor modernidade possível é, com freqüência, um mundo prepotente e vulgar.
Os privilegiados modernos "devem" esbanjar para que os outros reconheçam que eles pertencem ao andar de cima. Além disso, a promessa de que sempre haverá novos privilegiados (ou seja, a mobilidade social) é uma parte imprescindível do pacote.

Ora, acontece que uma "elite" econômica recente é sempre insegura de seu direito de ser elite. Conseqüência: empurrada pelo anseio de mostrar seu novo status ao mundo, a "elite" econômica emergente usa e abusa de seu poder. Por conceber a vida como uma feira de vaidades, ela só conhece uma vergonha: a vergonha de não conseguir impressionar os menos favorecidos.

É difícil que a crítica desse hábito da mente transforme os costumes dos neoprivilegiados. Ao serem criticados, eles entendem as vozes que os reprovam apenas como manifestações de inveja reprimida, ou seja, indiretamente, de reconhecimento de seu status.

Na Folha de quinta passada, Walter Salles escreveu sobre "os idiotas", que sobrevoam de helicóptero em vôo rasante as praias de Ilha Grande. Aposto que, nos olhares indignados de quem acha intolerável sua vulgaridade, eles enxergam a prova de uma inveja que confirmaria sua superioridade. Para eles, a verdadeira vergonha é a de não ter um helicóptero.

Será que a sem-vergonhice dos privilegiados é uma fatalidade moderna?

De fato, não é obrigatório que os privilegiados comprovem seu status pelo esbanjo e pela ostentação. Afinal, por que não desejariam ser reconhecidos por sua generosidade e por sua responsabilidade social? Não é assim que eles se tornariam propriamente uma elite?

Sem dúvida; mas, para isso, seria preciso que os neoprivilegiados mudassem sua visão do mundo. Seria preciso que eles constatassem, ou melhor, sentissem que a experiência humana (inclusive a deles próprios) é mais complexa do que a tarefa de melhorar, comprovar e ostentar status.
Fazer valer a complexidade da experiência humana e nos interessar por ela, essa é uma das funções básicas da cultura, em todas as suas formas. A cultura é, para nós, modernos, o equivalente dos códigos que, nas sociedades tradicionais, ditavam as condutas certas e os motivos de vergonha. À diferença desses códigos, a cultura não é normativa: ela nos dá acesso a um repertório infinito de destinos e nos convida a medir livremente a qualidade de nossos atos num labirinto de histórias complexas como é, de fato, a vida. O problema é que, em geral, a cultura não está entre as prioridades dos neoprivilegiados.

Claro, o tempo ajuda. Nas melhores condições, em duas ou três gerações, os neoprivilegiados podem deixar de se preocupar tanto com a ostentação que comprovaria seu status e descobrir a complexidade do mundo. Eles podem, em suma, produzir uma elite que mereça esse nome.
Também há casos excepcionais, em que os neoprivilegiados não se perdem na tarefa de ostentar suas conquistas. Às vezes, eles carregam consigo uma sólida referência à cultura ancestral de sua origem humilde.

Mas a regra geral continua a mesma: quanto mais rápido o acesso a um status superior e quanto menor o apego à cultura, tanto mais a necessidade de ganhar legitimidade produz privilegiados sem pudor no uso e abuso de seu poder.

O Brasil é um país de alta mobilidade social (veja-se o livro de José Pastore e Nelson do Valle Silva, "Mobilidade Social no Brasil"). E não se pode dizer que o apego à cultura garanta, entre nós, uma rápida transformação dos privilegiados em verdadeira elite. Essas duas condições prometem ondas inesgotáveis de privilegiados sem-vergonha.

A essas condições, acrescente-se o caráter conservador da modernização brasileira. "Elites" inseguras, na procura de uma maneira definitiva de confirmar o privilégio que elas acabam de conquistar, perguntam-se, inquietas: "Se qualquer um pode estar amanhã no meu lugar, que privilégio é o meu?". A solução que elas encontram é um paradoxo: elas se afirmam pela ostentação (como as "elites" modernas), mas procuram meios de garantir a exclusão dos menos favorecidos (como as elites tradicionais). Querem subir na vida fechando a porta atrás de si.
Seu estratagema é duplo. Econômico: consiste em fazer o necessário para que os menos favorecidos permaneçam longe da escada que permitiria sua ascensão social.

Psicológico: trata-se de envergonhar o povo, de transformar sua pobreza em motivo de vergonha.

Para isso, basta que a ostentação e o abuso se tornem costumes da comunidade inteira, de forma que, para todos, a única vergonha que importa seja a de não conseguir impressionar os outros. Nasce assim a vergonha de ser pobre.

09 fevereiro 2006

Dois tipos de vergonha (moralidade 2)

A última coluna terminou assim: "Como funciona (ou não funciona) a vergonha numa sociedade moderna, como a nossa?". Começo a responder.

Dois tipos de vergonha organizam coletividades diferentes: uma vergonha, digamos, antiga, que vale para as sociedades tradicionais (como o Japão de Ruth Benedict, que mencionei na semana passada) e uma vergonha moderna, que vale para nós.

A vergonha antiga não é apenas uma longínqua realidade histórica ou antropológica. Todos podemos conhecer por experiência, em nossa vida, ambas as vergonhas. Caracterizá-las porque correspondem a sociedades distintas é só uma maneira simples de explicá-las.

A vergonha antiga é dominante nas sociedades tradicionais, em que existem códigos de honra ou normas de conduta para cada grupo e casta da coletividade. O sujeito dessas sociedades é (e se sente) definido pelo grupo ou pela casta aos quais ele pertence: quem desrespeita os códigos não cumpre com os requisitos de sua própria identidade. Ele se envergonha porque seu ato compromete a significação de sua existência, quebra a integridade de seu ser.

Por exemplo, um nobre do século 12, saqueando uma aldeia a caminho de Jerusalém, podia estuprar mocinhas sem sentir vergonha alguma. Por mais que já houvesse, na época, alguém para reprovar seus atos, estuprar mocinhas numa cruzada não era um comportamento que sacudisse os alicerces de sua identidade. No entanto, se ele faltasse à palavra dada, mesmo que ninguém soubesse disso e pudesse reprová-lo, ele, provavelmente, desmoronaria de cima de seu cavalo, traidor de sua casta e de seus ascendentes. Essa seria sua vergonha.

A modernidade acabou com os códigos de honra e as normas de conduta para cada casta, porque suprimiu as castas. Com isso, nasceu, ou melhor, tornou-se dominante um novo tipo de vergonha.

Para explicar a mudança, recorro ao clássico de Norbert Elias, "O Processo Civilizador". Elias mostra que a modernidade transformou os tratados de boas maneiras. Até o século 15 ou 16, os tratados explicavam o que os homens da corte deviam fazer para pertencerem à corte (esse era, aliás, o sentido da "cortesia" -ser cortês significava pertencer à corte). A partir do século 15, os tratados começam a salientar que as boas maneiras não são apenas os hábitos de uma casta de cortesões, elas servem para que os outros olhem para a gente com simpatia.

No passado, alguém não assoprava o nariz na manga do vizinho porque isso não condizia com sua identidade (de cortesão, no caso). Hoje, agimos da mesma forma, mas para que o vizinho nos considere com carinho, visto que poupamos sua manga.

Em outras palavras, os códigos de honra e as normas de conduta são substituídos, na modernidade, pelo olhar e pela consideração dos outros. Quando agimos errado, a vergonha não nasce do receio de perdermos nossa identidade, mas da previsão de que seremos malvistos, reprovados. O drama de quem vai para a lista negra do SPC não é que ele compromete sua identidade de comerciante ou consumidor, mas que ele "suja seu nome na praça".
Trata-se de experiências psicológicas distintas.

A vergonha antiga é o sentimento de uma dívida simbólica que não foi paga: desrespeitamos nossa herança ou as leis de nossa estirpe, casta ou família, traímos o que nos definia. A vergonha moderna é o sentimento de uma perda de amor: os outros não gostarão mais de nós.
A vergonha antiga é a sensação de uma indignidade interna: não estamos à altura de quem somos. A vergonha moderna é externa: o que nos envergonha é a rejeição, o desamparo que nos assolará quando ninguém mais nos amará.

A vergonha antiga se preocupa com nossa identidade, a vergonha moderna se preocupa com nossa reputação.

Cuidado, nenhuma "leviandade" nessa mudança. Nosso lugar na sociedade não é mais decidido pelo berço, não é um destino; por isso mesmo, ele só pode depender da opinião que os outros têm de nós (e, portanto, de nossa capacidade de sermos aceitos e amados por eles).

Conseqüência: na modernidade, as razões de vergonha não correspondem a um código fixo, elas variam ao longo do tempo, seguindo as mudanças dos hábitos e dos costumes, ou seja, da maneira de pensar da coletividade que nos aprova ou reprova.

Um único grande princípio, fixo e inaugural (que tentarei explicar na próxima coluna), afirma-se apesar da variação dos costumes: em matéria de amor, paixões e desejos eróticos, para nós, não há vergonha. Ou melhor, só há uma vergonha possível (parecida, aliás, com a vergonha antiga): a vergonha de não assumir e não viver o desejo da gente.

O maravilhoso filme de Ang Lee em cartaz nestes dias, "O Segredo de Brokeback Mountain", é um exemplo perfeito. Seu sucesso (merecido) prova que, desde o começo dos anos 60 (época dos fatos narrados), os costumes mudaram. Além disso, um "detalhe" chama a atenção: em nenhum momento os protagonistas sentem vergonha por seu amor e desejo homossexuais. Eles se escondem para proteger-se do preconceito local, mas nunca se envergonham. Nisso eles são heróis modernos.

02 fevereiro 2006

Culpa e vergonha (Moralidade 1)

Em 2005, as CPIs escancararam atos de corrupção, apropriações indébitas, malversações variadas. A campanha eleitoral deste ano promete uma reprise e uma ampliação do mesmo espetáculo.

Mesmo assim, a impressão de muitos é que tudo isso seja apenas a ponta de um iceberg. É como se estivéssemos convencidos de que uma desonestidade endêmica compromete cada órgão vital do país, se não cada consciência.

Pagamos a dívida com o FMI, conseguimos um superávit primário e, quem sabe, com a inflação controlada e a baixa dos juros, a dívida interna diminua. Mas não há como festejar: o país nos parece sofrer de um déficit mais fundamental, que nenhuma política econômica sarará, um déficit moral.

Durante o século 20, aliás, muitos sociólogos e ensaístas brasileiros se debruçaram sobre esse déficit moral, perguntando-se como ele teria chegado a ser um "costume" nacional. Um costume, segundo a definição proposta por Tocqueville, é um hábito do corpo e do espírito, um hábito compartilhado por uma coletividade; ele dá forma a escolhas e atos de maneira, por assim dizer, espontânea, irrefletida.

É nesse contexto que dedico uma pequena série de colunas (seguidas, mas com possíveis exceções) ao funcionamento de alguns reguladores da moralidade em nossa sociedade.
Num livro famoso, "O Crisântemo e a Espada", de 1946, uma grande antropóloga americana, Ruth Benedict, tentou entender a sociedade japonesa.

Ela chegou a uma conclusão que se tornou clássica: há sociedades em que o comportamento moral é regulado pela vergonha (por exemplo, o Japão) e outras em que ele é regulado pela culpa (por exemplo, as sociedades ocidentais modernas). Em cada tipo de sociedade, ambos os afetos estariam presentes como motivações e deterrentes, mas um deles seria dominante.
Nas sociedades em que predomina a vergonha, o sujeito escolhe agir, se abster ou impor limites à sua ação para não perder a face e para preservar ou resgatar sua honra e sua dignidade. Nas outras, o sujeito age para evitar a culpa ou para expiá-la.

A ação moral concreta é parecida nos dois tipos de culturas. Por exemplo, em ambos, um sujeito moral não rouba, mas, no primeiro caso, ele não rouba para evitar a desonra que espera o ladrão; no segundo, ele não rouba para não se sentir culpado.

A vergonha parece ser um regulador perfeito para as sociedades tradicionais, em que, acima da lei, vigem os códigos de honra, a fidelidade ao legado dos ancestrais, o sentimento de uma missão simbólica da estirpe e da casta -ideais que permitem medir nosso valor e nossa dignidade.
A culpa seria o regulador das sociedades individualistas modernas, cuja origem está na idéia cristã de que o indivíduo deve pouco ou nada a seu passado e aos grupos aos quais ele pertence, mas é contável diante de um Deus que sabe tudo e, em última instância, julgará e punirá ou recompensará.

O Brasil de hoje é, grosso modo (voltarei a essa aproximação), uma sociedade ocidental moderna e fundamentalmente cristã. Na oposição proposta por Benedict, o sentimento que regula nossa ação moral deveria ser sobretudo a culpa.

No entanto, a sabedoria da língua sugere algo diferente: a malandragem "não tem vergonha na cara", "sem-vergonha" é uma fórmula tão corriqueira que se tornou um adjetivo hifenizado, assim como "pouca-vergonha" se tornou um substantivo e o mesmo vale para "cara-de-pau".
Em matéria de moral, nossa língua espera mais da vergonha que da culpa. E, ao estigmatizar a imoralidade, ela deplora mais a falta de vergonha do que a falta de culpa.
Apesar da idéia de Benedict, nossa língua tem razão, sobretudo porque a culpa, de fato, é um péssimo regulador moral.

À primeira vista, que a gente acredite ou não nas penas do inferno, pareceria lógico que evitássemos as ações que (como sabemos sempre de antemão) não nos deixariam dormir tranqüilos. Mas qualquer terapeuta sabe que não é assim: a culpa funciona como uma espécie de pagamento antecipado. Autorizo-me a fazer algo que me parece errado justamente porque sei que me sentirei culpado, e meu sofrimento futuro compra, desde já, o perdão para meu ato.
A Igreja Católica, quando instituiu o arrependimento e a penitência como condições da confissão, inventou um dispositivo extraordinariamente permissivo. Posso pecar quanto eu quiser, pois já me arrependo, sinto-me culpado, sofro e meu sofrimento me remirá.

É a mesma dinâmica que funciona quando pedimos desculpas: numa palavra só, admitimos que nosso ato é errado, prometemos que nos sentiremos culpados, e essa promessa nos garante o perdão. Com isso, podemos furar a fila e passar a perna, à condição de murmurar "desculpe".
A vergonha é um regulador moral muito mais eficaz que a culpa porque meu sofrimento por perder a face não repara minha honra. Enquanto a própria culpa absolve o sujeito culpado, a vergonha mancha, e sentir vergonha não restitui a dignidade de ninguém. A única cura da vergonha está nos atos futuros do sujeito.

Mas como funciona (ou não funciona), então, a vergonha numa sociedade moderna, como a nossa?
Continua.