02 fevereiro 2006

Culpa e vergonha (Moralidade 1)

Em 2005, as CPIs escancararam atos de corrupção, apropriações indébitas, malversações variadas. A campanha eleitoral deste ano promete uma reprise e uma ampliação do mesmo espetáculo.

Mesmo assim, a impressão de muitos é que tudo isso seja apenas a ponta de um iceberg. É como se estivéssemos convencidos de que uma desonestidade endêmica compromete cada órgão vital do país, se não cada consciência.

Pagamos a dívida com o FMI, conseguimos um superávit primário e, quem sabe, com a inflação controlada e a baixa dos juros, a dívida interna diminua. Mas não há como festejar: o país nos parece sofrer de um déficit mais fundamental, que nenhuma política econômica sarará, um déficit moral.

Durante o século 20, aliás, muitos sociólogos e ensaístas brasileiros se debruçaram sobre esse déficit moral, perguntando-se como ele teria chegado a ser um "costume" nacional. Um costume, segundo a definição proposta por Tocqueville, é um hábito do corpo e do espírito, um hábito compartilhado por uma coletividade; ele dá forma a escolhas e atos de maneira, por assim dizer, espontânea, irrefletida.

É nesse contexto que dedico uma pequena série de colunas (seguidas, mas com possíveis exceções) ao funcionamento de alguns reguladores da moralidade em nossa sociedade.
Num livro famoso, "O Crisântemo e a Espada", de 1946, uma grande antropóloga americana, Ruth Benedict, tentou entender a sociedade japonesa.

Ela chegou a uma conclusão que se tornou clássica: há sociedades em que o comportamento moral é regulado pela vergonha (por exemplo, o Japão) e outras em que ele é regulado pela culpa (por exemplo, as sociedades ocidentais modernas). Em cada tipo de sociedade, ambos os afetos estariam presentes como motivações e deterrentes, mas um deles seria dominante.
Nas sociedades em que predomina a vergonha, o sujeito escolhe agir, se abster ou impor limites à sua ação para não perder a face e para preservar ou resgatar sua honra e sua dignidade. Nas outras, o sujeito age para evitar a culpa ou para expiá-la.

A ação moral concreta é parecida nos dois tipos de culturas. Por exemplo, em ambos, um sujeito moral não rouba, mas, no primeiro caso, ele não rouba para evitar a desonra que espera o ladrão; no segundo, ele não rouba para não se sentir culpado.

A vergonha parece ser um regulador perfeito para as sociedades tradicionais, em que, acima da lei, vigem os códigos de honra, a fidelidade ao legado dos ancestrais, o sentimento de uma missão simbólica da estirpe e da casta -ideais que permitem medir nosso valor e nossa dignidade.
A culpa seria o regulador das sociedades individualistas modernas, cuja origem está na idéia cristã de que o indivíduo deve pouco ou nada a seu passado e aos grupos aos quais ele pertence, mas é contável diante de um Deus que sabe tudo e, em última instância, julgará e punirá ou recompensará.

O Brasil de hoje é, grosso modo (voltarei a essa aproximação), uma sociedade ocidental moderna e fundamentalmente cristã. Na oposição proposta por Benedict, o sentimento que regula nossa ação moral deveria ser sobretudo a culpa.

No entanto, a sabedoria da língua sugere algo diferente: a malandragem "não tem vergonha na cara", "sem-vergonha" é uma fórmula tão corriqueira que se tornou um adjetivo hifenizado, assim como "pouca-vergonha" se tornou um substantivo e o mesmo vale para "cara-de-pau".
Em matéria de moral, nossa língua espera mais da vergonha que da culpa. E, ao estigmatizar a imoralidade, ela deplora mais a falta de vergonha do que a falta de culpa.
Apesar da idéia de Benedict, nossa língua tem razão, sobretudo porque a culpa, de fato, é um péssimo regulador moral.

À primeira vista, que a gente acredite ou não nas penas do inferno, pareceria lógico que evitássemos as ações que (como sabemos sempre de antemão) não nos deixariam dormir tranqüilos. Mas qualquer terapeuta sabe que não é assim: a culpa funciona como uma espécie de pagamento antecipado. Autorizo-me a fazer algo que me parece errado justamente porque sei que me sentirei culpado, e meu sofrimento futuro compra, desde já, o perdão para meu ato.
A Igreja Católica, quando instituiu o arrependimento e a penitência como condições da confissão, inventou um dispositivo extraordinariamente permissivo. Posso pecar quanto eu quiser, pois já me arrependo, sinto-me culpado, sofro e meu sofrimento me remirá.

É a mesma dinâmica que funciona quando pedimos desculpas: numa palavra só, admitimos que nosso ato é errado, prometemos que nos sentiremos culpados, e essa promessa nos garante o perdão. Com isso, podemos furar a fila e passar a perna, à condição de murmurar "desculpe".
A vergonha é um regulador moral muito mais eficaz que a culpa porque meu sofrimento por perder a face não repara minha honra. Enquanto a própria culpa absolve o sujeito culpado, a vergonha mancha, e sentir vergonha não restitui a dignidade de ninguém. A única cura da vergonha está nos atos futuros do sujeito.

Mas como funciona (ou não funciona), então, a vergonha numa sociedade moderna, como a nossa?
Continua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário