16 fevereiro 2006

Privilegiados sem-vergonha

Na modernidade , os privilegiados não são príncipes nem condes. Eles devem seu status à sua riqueza e, fato crucial, ao olhar dos outros: "Pertenço à classe A ou B pela minha renda, mas essa não significaria nada se as classes C, D e E não me reconhecessem como privilegiado".

A exigência de reconhecimento torna nossa vida um pouco fútil, mas, em compensação, todos podemos melhorar nossa condição: é só dar duro (ou ter sorte) e exibir nosso sucesso aos outros.
De fato, essa melhor modernidade possível é, com freqüência, um mundo prepotente e vulgar.
Os privilegiados modernos "devem" esbanjar para que os outros reconheçam que eles pertencem ao andar de cima. Além disso, a promessa de que sempre haverá novos privilegiados (ou seja, a mobilidade social) é uma parte imprescindível do pacote.

Ora, acontece que uma "elite" econômica recente é sempre insegura de seu direito de ser elite. Conseqüência: empurrada pelo anseio de mostrar seu novo status ao mundo, a "elite" econômica emergente usa e abusa de seu poder. Por conceber a vida como uma feira de vaidades, ela só conhece uma vergonha: a vergonha de não conseguir impressionar os menos favorecidos.

É difícil que a crítica desse hábito da mente transforme os costumes dos neoprivilegiados. Ao serem criticados, eles entendem as vozes que os reprovam apenas como manifestações de inveja reprimida, ou seja, indiretamente, de reconhecimento de seu status.

Na Folha de quinta passada, Walter Salles escreveu sobre "os idiotas", que sobrevoam de helicóptero em vôo rasante as praias de Ilha Grande. Aposto que, nos olhares indignados de quem acha intolerável sua vulgaridade, eles enxergam a prova de uma inveja que confirmaria sua superioridade. Para eles, a verdadeira vergonha é a de não ter um helicóptero.

Será que a sem-vergonhice dos privilegiados é uma fatalidade moderna?

De fato, não é obrigatório que os privilegiados comprovem seu status pelo esbanjo e pela ostentação. Afinal, por que não desejariam ser reconhecidos por sua generosidade e por sua responsabilidade social? Não é assim que eles se tornariam propriamente uma elite?

Sem dúvida; mas, para isso, seria preciso que os neoprivilegiados mudassem sua visão do mundo. Seria preciso que eles constatassem, ou melhor, sentissem que a experiência humana (inclusive a deles próprios) é mais complexa do que a tarefa de melhorar, comprovar e ostentar status.
Fazer valer a complexidade da experiência humana e nos interessar por ela, essa é uma das funções básicas da cultura, em todas as suas formas. A cultura é, para nós, modernos, o equivalente dos códigos que, nas sociedades tradicionais, ditavam as condutas certas e os motivos de vergonha. À diferença desses códigos, a cultura não é normativa: ela nos dá acesso a um repertório infinito de destinos e nos convida a medir livremente a qualidade de nossos atos num labirinto de histórias complexas como é, de fato, a vida. O problema é que, em geral, a cultura não está entre as prioridades dos neoprivilegiados.

Claro, o tempo ajuda. Nas melhores condições, em duas ou três gerações, os neoprivilegiados podem deixar de se preocupar tanto com a ostentação que comprovaria seu status e descobrir a complexidade do mundo. Eles podem, em suma, produzir uma elite que mereça esse nome.
Também há casos excepcionais, em que os neoprivilegiados não se perdem na tarefa de ostentar suas conquistas. Às vezes, eles carregam consigo uma sólida referência à cultura ancestral de sua origem humilde.

Mas a regra geral continua a mesma: quanto mais rápido o acesso a um status superior e quanto menor o apego à cultura, tanto mais a necessidade de ganhar legitimidade produz privilegiados sem pudor no uso e abuso de seu poder.

O Brasil é um país de alta mobilidade social (veja-se o livro de José Pastore e Nelson do Valle Silva, "Mobilidade Social no Brasil"). E não se pode dizer que o apego à cultura garanta, entre nós, uma rápida transformação dos privilegiados em verdadeira elite. Essas duas condições prometem ondas inesgotáveis de privilegiados sem-vergonha.

A essas condições, acrescente-se o caráter conservador da modernização brasileira. "Elites" inseguras, na procura de uma maneira definitiva de confirmar o privilégio que elas acabam de conquistar, perguntam-se, inquietas: "Se qualquer um pode estar amanhã no meu lugar, que privilégio é o meu?". A solução que elas encontram é um paradoxo: elas se afirmam pela ostentação (como as "elites" modernas), mas procuram meios de garantir a exclusão dos menos favorecidos (como as elites tradicionais). Querem subir na vida fechando a porta atrás de si.
Seu estratagema é duplo. Econômico: consiste em fazer o necessário para que os menos favorecidos permaneçam longe da escada que permitiria sua ascensão social.

Psicológico: trata-se de envergonhar o povo, de transformar sua pobreza em motivo de vergonha.

Para isso, basta que a ostentação e o abuso se tornem costumes da comunidade inteira, de forma que, para todos, a única vergonha que importa seja a de não conseguir impressionar os outros. Nasce assim a vergonha de ser pobre.

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