Na revista "New Yorker" de 27 de fevereiro de 2006, foi publicada uma excelente reportagem de David Remnick sobre a chegada ao poder do Hamas, na Palestina.
Remnick entrevistou o xeque Nayef Rajoub, que, nas recentes eleições, foi o recordista de votos da Cisjordânia. Rajoub, depois de lamentar que o mundo ocidental "da moda e da mídia" seja "controlado por judeus", declarou: "Freud, um judeu, é aquele que acabou com a moral, e Marx acabou com as ideologias divinas".
Não sei se Freud acabou com a moral (por razões que explicarei a seguir, penso o contrário) e não parece que Marx tenha acabado com as ideologias divinas. Seja como for, Rajoub tem razão de agrupar Freud e Marx numa mesma execração do Ocidente (que é, segundo ele, devasso e perdido).
Para justificar essa reunião de Marx e Freud, não é preciso recorrer às tentativas (típicas dos anos 60 e 70) de juntá-los num único projeto revolucionário que transformaria de vez a subjetividade (a vida cotidiana) e a organização social e econômica de nosso mundo. Ou melhor, para justificar a antipatia do xeque por Freud e Marx, não é preciso ressuscitar Herbert Marcuse.
Marx e Freud são os pensadores modernos que transformaram mais radicalmente nossa maneira imediata, espontânea, de enxergar a realidade. Pouco importa que sejamos freudianos ou marxistas, pouco importa que a gente tenha lido o que Marx e Freud escreveram: depois deles, pensamos diferente. Como?
Espontaneamente, a partir de Marx, enxergamos nossa realidade social, econômica e política como uma arena de conflitos e, a partir de Freud, pensamos a subjetividade como um conflito interno permanente.
Ora, o xeque Rajoub não gosta de conflitos, a não ser que sejam conflitos bem externos -com o povo judeu, por exemplo, ou com o Ocidente. Conflitos em casa ou na cabeça, nem falar. Rajoub tem razão: a influência de Marx sobre seus eleitores seria péssima, a de Freud pior ainda.
Mas voltemos à idéia do xeque, segundo a qual, entre os ocidentais, Freud teria acabado com a moral. Talvez ele esteja estigmatizando, via Freud, a liberdade de nossos costumes sexuais. Mas é possível que sua crítica seja mais "pertinente": de fato, Freud, com suas histórias de inconsciente, de desejos reprimidos, de conflitos psíquicos, tornou o juízo moral muito complicado.
Na distinção entre o bem e o mal, as coisas se atrapalham quando (na aurora da modernidade ocidental) a gente começa a confiar no foro íntimo de cada um e pára de acreditar cegamente nas regras transmitidas pela tradição, religiosa ou não. Elas só pioram quando, com a experiência freudiana, no dito foro íntimo, enfrentam-se pensamentos e afetos contraditórios e de difícil acesso pelo próprio sujeito.
Segundo o xeque Nayef Rajoub, este é o fim da moral: as pessoas, em vez de obedecer ao que foi escrito ou dito pelos anciões, pensam com sua própria cabeça e, além disso, seus pensamentos são conflituosos e confusos. Mas esse "fim da moral" é o começo do que nós chamamos comportamento moral.
Para o xeque, ser moral significa seguir as regras. Para nós, ser moral significa se perguntar o que é moral e o que não é. A resposta pode ser difícil ou impossível; podemos não "saber" nunca se o aborto ou o suicídio assistido são morais: o que importa é que a gente não pare de se interrogar sobre a moralidade desses atos.
Do ponto de vista ocidental, Rajoub é profundamente imoral, porque não se questiona. E Freud é um pensador moral, por ele ter complicado singularmente nosso questionamento.
O xeque Nayef Rajoub não é o único que não gosta de Freud. Em 2004, um entrevistador perguntou a George W. Bush se sua decisão de invadir o Iraque não podia ser inspirada pela vontade de continuar a obra de seu pai ou de mostrar que ele saberia levá-la até o fim. George W. Bush não gostou dessa sugestão "freudiana" e respondeu que ele não iria "se deitar no divã".
Não sei se a decisão de invadir o Iraque foi ou não produzida por algum sintoma da família Bush, mas tendo a pensar que, na hora de decidir sobre a vida e a morte de milhares de pessoas, deitar-se num divã seja uma boa idéia. Não porque isso simplificaria a decisão, mas, justamente, porque a complicaria.
No sábado retrasado, Freud teria feito 150 anos. A data está sendo celebrada -com aplausos e algumas vaias.
Mas, seja qual for nossa opinião sobre a eficácia da psicanálise ou o valor de sua teoria, o fato é que Freud mudou de maneira irreversível nossa experiência de nós mesmos.
Em particular, graças a ele, o foro íntimo, onde fazemos nossas escolhas, tornou-se para sempre um lugar mais complexo e atormentado. Com isso, mesmo se a psicanálise for relegada um dia no museu das terapias ultrapassadas, Freud continuará sendo um luminar da consciência moral ocidental.
Um ditado diz que os inimigos de nossos inimigos são nossos amigos. Ele não é sempre verdadeiro, mas, no caso, nesse começo de século, fico satisfeito de estar em companhia de Freud.
(Estou viajando. Só poderei responder aos e-mails que serão recebidos a partir do 12 de junho próximo.)
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