04 maio 2006

Palavras vazias

Aos 12 anos, fiquei um mês de cama. Não me lembro se foi por uma gripe ou algo mais sério, mas sei que passava meu tempo lendo. Alguém me oferecera um tratado sobre o Diabo: era uma longa compilação, desde a queda de Lúcifer até os cultos satânicos modernos. O livro terminava com um apêndice que explicava as diferentes maneiras de convocar o demônio.

Era crucial evitar que Satanás, uma vez convocado, se apoderasse de minha alma sem oferecer uma contrapartida valiosa -tipo: "Dano-me para a eternidade, mas você fará meus deveres de casa até o fim de meus estudos". Ora, o livro propunha rituais minuciosos (pentagramas, círculos de sangue etc.) que eram impossíveis de realizar no meu quarto. Salvo um: uma fórmula de duas páginas, cuja simples leitura em voz alta garantiria que o capeta se apresentasse manso e bem-disposto. Problema: a fórmula só funcionaria se ela fosse lida sem erros; uma letra fora do lugar bastaria para que o diabo aparecesse na minha frente indignado e poderosíssimo. Detalhe: o texto era composto por uma série de nomes diabólicos com uma concentração de consonantes de dar inveja a uma lista telefônica polonesa, e o risco de errar na pronúncia era considerável. Na solidão de meu quarto, comecei a ler em voz alta. Dezenas de vezes, amarelei antes do fim. Mas, logo, recomeçava. Por quê?

Não acho que estivesse a fim de encontrar o capeta, tampouco tinha um pacto importante para lhe propor, mas não resistia à sedução de palavras que, segundo o livro que estava na minha mão, teriam o poder de evocar o próprio espírito do mal.

Pois bem, o best-seller mundial do último ano é "O Código Da Vinci", de Dan Brown. No seu rasto, vêm "O Enigma do Quatro", de Caldwell e Thomason, e "O Clube Dante", de Matthew Pearl. Isso, sem contar "O Historiador", de Elizabeth Kostova, ou "O Terceiro Segredo", de Steve Berry.

Na minha (prazerosa) leitura, são romances que pertencem ao filão de "O Nome da Rosa", de Umberto Eco (1980).

Fora o sucesso de público, o que a história de Maria Madalena tem a ver com os vampiros ou com o terceiro segredo de Fátima? Por que juntar esses romances num mesmo "filão"?

Certamente, eles satisfazem ao gosto "new age" pelas coisas arcanas e "espirituais", ou seja, encorajam-nos a acreditar que a vida seja mais misteriosa do que ela é. Desse ponto de vista, eles não são diferentes das façanhas de Harry Potter e da magia de Paulo Coelho.

Mas não é só isso: todos os romances que mencionei contam histórias em que as palavras têm um valor muito especial. Morre-se por um livro inédito de Aristóteles, mata-se por um evangelho apócrifo; uma frase pronunciada em voz alta comanda a aparição do vampiro; quase sempre, o segredo está em alguns textos que é preciso encontrar, ler, meditar e interpretar perfeitamente -textos em que cada letra conta.

É bem possível que o motivo do sucesso atual desses best-sellers seja, então, o esvaziamento dos discursos que enchem o dia-a-dia de nossos ouvidos: a nostalgia por uma palavra magicamente plena e eficiente bate forte num momento (ou numa época) em que as palavras que nos interpelam parecem curiosamente fúteis.

Em sua maioria, as falas públicas (das quais somos os destinatários) não apostam na nossa capacidade de entender, memorizar, pensar e julgar; sobretudo, elas supõem de antemão sua própria irrelevância: desprezam sua capacidade expressiva, seu texto e sua mensagem. O que é despejado em nossos ouvidos cultiva apenas aquela função da linguagem que Jakobson chamava "função apelativa", ou seja, a função pela qual quem fala quer nos induzir a agir segundo seus desejos.

Criminosos convictos nos falam de ética pública e pedem cumplicidade, políticos desqualificados nos prometem futuros radiosos e pedem votos, publicitários mentirosos nos garantem a felicidade a preço de banana e pedem compras. O texto não tem importância nenhuma, só importa que ele nos convoque.

Nos primórdios da psicologia comportamental, Pavlov condicionou um cachorro para que salivasse a cada vez que ele escutava uma campainha. Pois bem, espera-se que sejamos como o cachorro de Pavlov no meio de um concerto de campainhas, salivando sem parar e sem pensar.
Em suma, estamos na posição do capeta de minha infância, mas recebendo fórmulas incoerentes. O capeta, em princípio, ficaria furioso. E nós?

Bom, aparentemente, em compensação, somos seduzidos por histórias em que as palavras contam, pois escondem (e, eventualmente, revelam) um sentido, histórias em que a ação é fruto de uma atenta meditação do que foi dito e está escrito.

Aparte: estreou na semana passada, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, a nova peça de Gerald Thomas, em homenagem a Samuel Beckett, "Asfaltaram a Terra". Na verdade, são quatro peças breves (apresentadas duas de cada vez, em dias alternados), com Serginho Groisman, Luiz Damasceno, Fabiana Gugli e o próprio Thomas como protagonistas. Ninguém melhor que Gerald Thomas consegue transformar em espetáculo a extraordinária cacofonia que assombra os ouvidos modernos.

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