O PAC, bom ou ruim, não será "na veia"; será administrado por via oral ou cutânea
ANOS ATRÁS (e longe do Brasil), tentei ajudar um jovem cuja vida era devorada por um devaneio. Ele não se limitava a sonhar, de vez em quando, com o dia em que todas as mulheres o achariam bonito e o mundo inteiro conclamaria seus méritos: quando me consultou, já tinha preenchido dezenas de cadernos em que, por exemplo, detalhava planos de investimento para a imensa fortuna (que seria sua) e anotava os tópicos para os discursos de aceitação dos prêmios que lhe seriam conferidos (entre eles, o Nobel de Literatura).
O problema não era a hipertrofia do devaneio, mas a inércia que ele alimentava. O jovem não tomava iniciativa alguma que o aproximasse de seu sonho; apenas aperfeiçoava a descrição de seu futuro, esperando por um milagre que o realizasse. Ele encontraria, um dia, uma caixa com seis romances datilografados, os quais, publicados a intervalos bem orquestrados, venderiam milhões de exemplares pelo mundo afora.
Em outra versão, a caixa lhe seria entregue por um sábio japonês que morreria nos seus braços ou ainda por um extraterrestre.
A energia que ele dedicava a imaginar e planejar os leilões dos agentes literários, os lançamentos, os pedidos de adaptação cinematográfica etc. teria sido suficiente para escrever ao menos os primeiros dois ou três romances. Mas esse cálculo não vinha ao caso. Agir (colocar as mãos na massa e, quem sabe, fracassar) era fora de questão. Melhor viver no devaneio e na espera das mágicas.
Durante esta última semana, pensei repetidamente no meu jovem paciente. Pois me parece que todos nós (governo, políticos, comentadores e homens da rua) lidamos com o PAC (e com qualquer plano para o país) da mesma forma. Discutimos e elaboramos: há quem diga que o plano é perfeito, quem pense que é tímido, quem queira modificá-lo em benefício próprio ou de seus eleitores, quem ache que está totalmente errado. Tanto faz: elaboração e discussão são parecidas com os cadernos do jovem sonhador porque deixam de lado a questão "trivial" da realização. Como assim?
Para começar, sempre há uma inquietante desproporção entre os recursos alocados e os que chegam efetivamente à destinação. Ou seja, do valor de qualquer pacote, é preciso deduzir o custo da lentidão política, da corrupção, da incompetência técnica, da preguiça administrativa, da inércia burocrática e por aí vai.
Qual é, neste caso, o "custo Brasil"?
Acho simpático o otimismo de Dilma Rousseff, mas os famosos R$ 384 bilhões de dinheiro público não serão, como ela disse, administrados "na veia", ou seja, de maneira rápida e eficiente. A administração do remédio se dará provavelmente por via oral ou mesmo cutânea.
Podemos discutir para saber se estamos receitando a dose de antibiótico necessária para curar nossa pneumonia, mas, certamente, uma quantidade relevante de remédio ficará no frasco, uma parte maior será eliminada por uma digestão preguiçosa, outra parte não será assimilada, outra ainda será absorvida por anticorpos seculares e, enfim, alguns enfermeiros displicentes se esquecerão de administrar a pílula ou passar a pomada com um mínimo de regularidade.
Em outras palavras, promover ou discutir o PAC (ou qualquer plano) sem impor mudanças radicais de gestão (burocrática e administrativa - o que significa também fiscal e política) é, como no devanear de meu jovem paciente, um jeito de preencher cadernos com visões do futuro, guardando-se de agir. Nada de novo: Sérgio Buarque de Hollanda já explicou e estigmatizou a paixão nacional pela retórica.
Ora, as reformas administrativas pedem competência, grandes esforços e, provavelmente, medidas impopulares. É mais gratificante elaborar novos planos. E esperar a mágica: um extraterrestre ou um japonês misterioso resolverão o problema, quem sabe baixando drasticamente os juros ou desvalorizando a moeda. Alguém nos dará dinheiro barato, e investiremos brutalmente; alguém decidirá que o real vale quatro dólares, e venderemos qualquer coisa pelo mundo afora. Tudo isso sem que a gente tenha de se preocupar com a agilidade de nossa administração, com nossa produtividade ou com a competitividade, a qualidade e a unicidade de nossos produtos. Todas coisas chatas, que demandam um trabalho danado. Melhor ficar discutindo o PAC e esperando Godot.
Agora, se um presidente e um governo quisessem passar para a história...
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