08 março 2007

Mistérios de dentro ou de fora

Desde quando o interior de nosso corpo revelaria os mistérios de nossa própria existência?

NA SEMANA passada, duas exposições estrearam na Oca do Parque do Ibirapuera, em São Paulo: "Corpo Humano" e "Leonardo da Vinci". O ideal seria visitá-las no mesmo dia (apesar das filas e do preço).

"Corpo Humano" apresenta 16 corpos esfolados e dissecados (e 225 órgãos internos). A exposição suscitou, pelo mundo afora, um enorme interesse de público e algumas críticas. Por exemplo, foi levantada a suspeita de que os corpos sejam cadáveres de indivíduos executados pela Justiça chinesa.

Seja como for, Roy Glover (o promotor desse circo anatômico ambulante) propõe um extraordinário espetáculo científico-educativo: enfim, podemos ver como somos por dentro. Diz a sinopse: "É uma oportunidade única para o público em geral explorar os mistérios de sua própria existência".

Pergunta: desde quando acreditamos que ver de perto o interior de nosso corpo seja um jeito de conhecer os mistérios de nossa existência? Não faz muito tempo.

Foi em algum momento do século 17 que nossa curiosidade científica e existencial começou a procurar respostas sobretudo no que está dentro das coisas e no invisível, no infinitamente pequeno (que podemos magnificar) ou no longínquo (que podemos aproximar e tornar visível). É nessa época que inventamos telescópio e microscópio. Desde então, descobrimos células, bactérias, vírus, circulação do sangue etc., assim como moléculas, átomos, cometas, satélites, buracos negros e por aí vai.

O cientista (que, geralmente, tem pouca consideração pela história da ciência) dirá que a ciência se engajou na direção do dentro e do perto, tornando visível o invisível, porque é assim que ela conseguiu entender melhor o mundo e transformá-lo no interesse de todos.
Mas, na verdade, a escolha pelo dentro e pelo perto não se deu na procura da eficácia técnica (que, aliás, no começo, era imprevisível).

Nossa cultura foi procurar a solução dos mistérios no que está escondido dentro dos indivíduos e dos objetos porque o conjunto do mundo visível tinha perdido seu sentido. A ciência se enveredou por um caminho forçado, imposto por um luto: éramos órfãos do sentimento de uma harmonia do Cosmo.

Se tivéssemos podido escolher o grande angular em vez do telescópio e do microscópio, se tivéssemos podido olhar para o conjunto e não sobretudo ou apenas para os elementos, teríamos produzido outra ciência (menos eficiente? Não há como saber). Agora é tarde: se, na noite de sábado passado, seu filho ficou doente, você, em princípio, preferiu pedir um exame de sangue a interrogar os efeitos do eclipse da Lua. Hoje, podemos "brincar" de astrólogos, mas nossa confiança num Universo harmônico, em que tudo estaria interligado, é abalada, duvidosa.
Os cadáveres de Roy Glover revelam alguns mistérios da existência nos mostrando o que é normalmente invisível, o interior do corpo. Mas há outros mistérios, perdidos: quem foram eles? Quem os amou, quem eles amaram, quem foram seus pais, qual conjuntura da família, do vilarejo, do mundo e dos astros acompanhou sua vida?

É o custo de nosso caminho forçado: nossa ciência gagueja quando se trata de entender o conjunto. Mapeamos o DNA e logo conheceremos cada proteína no sangue; em comparação, o que conseguimos entender das relações humanas e de nosso lugar no mundo é risível: conjeturas, interpretações nas quais a ciência compete com a fantasia.

Houve um momento de transição, mágico e esplendoroso, em que pareceu possível conciliar os inconciliáveis, ou seja, olhar para dentro, para o invisível, sem deixar de apostar numa suprema harmonia do mundo visível. Nesse momento, que é a Renascença, foi possível dissecar cadáveres e começar a construir ciência e técnicas eficientes sem abandonar a idéia de um Universo ordenado.

Na exposição de Leonardo, há desenhos anatômicos (resultado de dissecação) e há máquinas sofisticadas, mas, no centro, está o Homem Vitruviano com seu corpo perfeitamente inscrito num círculo. Leonardo podia explorar nossas entranhas sem deixar de acreditar na relação do corpo com o universo: a anatomia humana era, para ele, um microcosmo que refletia o macrocosmo.

Como seria o mundo de hoje se, por exemplo, medíssemos as distâncias não pelo metro (estabelecido arbitrariamente no século 18), mas pelo tamanho médio da envergadura de nossos braços?

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