O amor é prepotente: sempre acreditamos poder transformar e corrigir o objeto amado
NA SEMANA retrasada, estreou a nova versão brasileira de "My Fair Lady", no Teatro Alfa, em São Paulo. Jorge Takla, realizador e diretor, produziu um espetáculo encantador. A nova tradução, de Cláudio Botelho, é ótima; Amanda Acosta, como Eliza Doolittle, é adorável. O elenco, os cenários, a coreografia, as vozes, tudo é impecável.
Ao longo de minha vida, assisti a três produções de "My Fair Lady", (duas americanas e uma italiana) e, duas vezes, ao filme musical homônimo, que ganhou oito Oscars, em 1962. Também assisti à peça de Bernard Shaw, "Pigmalião" (na qual o musical é baseado), e ao filme "Pigmalião", de 1938 (que é a versão cinematográfica da peça). Em suma, a história de "My Fair Lady" me é bastante familiar, mas, a cada vez, ela me "pega". Por que será?
Certo, a música de F. Loewe é maravilhosa (algumas melodias integram meu módico repertório de chuveiro). Mas não é só isso: "My Fair Lady" é um clássico, que encena fantasias que habitam a mente de todos nós.
A história é conhecida: o professor Higgins encontra uma pobre vendedora de flores, estigmatizada por suas maneiras, sua gramática e sua pronúncia. Ele aposta que a transformará em uma "lady" com um curso intensivo de poucos meses. O mesmo professor, celibatário rabugento, aproveitará o curso para aprender algo sobre sentimentos.
Como nota Jorge Takla no programa do espetáculo, "My Fair Lady" é uma "Cinderela" em que acontece uma troca extraordinária entre um homem e uma mulher, cada um transformando o outro.
Voltemos ao mito que inspirou Bernard Shaw. Pigmalião era um escultor que se apaixonou perdidamente pela figura feminina que ele mesmo tinha esculpido. Afrodite ouviu suas súplicas e deu vida à estátua. Não se sabe se Pigmalião ficou feliz com essa dádiva ou se, ao longo do tempo, ele lamentou a época em que sua amada não tinha vida própria. Detalhe inquietante: Pigmalião criou a estátua e se apaixonou por ela porque desgostava das mulheres reais, que lhe pareciam indecentes (animadas por desejos autônomos).
A psicologia clínica usa o termo "pigmalionismo" para designar 1) a conduta erótica, um pouco estranha, de quem se apaixona por estátuas e as deseja; 2) num sentido mais amplo, a paixão pedagógica e erótica do sujeito que sonha com um objeto de amor e desejo que ele mesmo moldaria.
A psicologia experimental, nas últimas décadas, confirmou e debateu o "efeito Pigmalião": quando os professores esperam um grande progresso de seus alunos, os alunos progridem duas vezes mais rápido. O desempenho do aluno é proporcional às expectativas do professor.
Aos 20 anos, leitor assíduo de Ronald Laing e devoto da antipsiquiatria italiana, eu devaneava que, um dia, encontraria uma jovem esquizofrênica e catatônica: pela mágica de meus cuidados, eu lhe devolveria a fala e a vida. No processo, eu me apaixonaria por ela, e ela por mim; viveríamos felizes para sempre. Portanto, confesso: já fui pigmalionista e já apostei na força curativa do "efeito Pigmalião".
Mas a história de Pigmalião não se aplica apenas em casos de extremismo pedagógico e terapêutico. Qualquer um de nós desejou e deseja transformar o objeto amado. O amor é prepotente: idealizamos o outro e acreditamos firme que ele ou ela se emendarão. Somos convencidos de que o outro amado carrega todas as qualidades que nossa paixão lhe atribui: elas estão escondidas, atrás de uma "deformação" que será corrigida pela virtude de nosso amor.
Com isso, o amor desafia diferenças extremas, étnicas, culturais, religiosas e sociais. Um amigo carioca, aliás, me disse uma vez, brincando, que, se não tivéssemos uma fé desmedida no poder transformador do amor, se fôssemos "sensatos", homem só casaria com homem, e mulher com mulher.
Resta que, quando escolhemos nossa parceira ou nosso parceiro apesar de diferenças que nos incomodam e confiantes nas mudanças que virão, as chances de durar são pequenas. E grandes são as chances de que a vida em comum vire, rapidamente, um inferno. Mas é uma constatação que não inspira ninguém: o amor pensa o contrário, e esse é o mito de "My Fair Lady".
A peça de Bernard Shaw termina "mal" (Eliza não casa com o professor Higgins). "My Fair Lady", aparentemente, termina bem. Mas considere a última cena e, honestamente, pergunte-se: "Como essa história vai acabar?"
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