03 janeiro 2008

"Meu Nome Não É Johnny'


Os desmandos dos filhos constituem o consolo dos pais diante da inelutabilidade da morte

NOS anos 90, João Guilherme Estrella, um jovem de classe média-alta carioca, tornou-se "barão" do varejo de cocaína. Ele exportou "pura" para a Europa, foi preso com seis quilos da droga e, num processo memorável pela sinceridade do acusado e pela inteligência da juíza, foi condenado a dois anos de internação num manicômio judicial. Ele cumpriu a pena e é hoje um produtor musical.

Estréia amanhã "Meu Nome Não É Johnny", de Mauro Lima, com atuações notáveis de Cléo Pires e Selton Mello. O filme se inspira no livro homônimo (Record, reeditado nesta ocasião) em que Guilherme Fiuza reconstruiu e contou a história de João Guilherme Estrella.

O filme (como o livro) começa com uma breve descrição da infância de João Guilherme. Por um momento, pensei (receei) que a narrativa adotasse a explicação que quase sempre liga a toxicomania dos filhos à permissividade dos pais. É aquela lengalenga: os pais nunca souberam dizer não, e os filhos, incapazes de encarar qualquer frustração, procuram na droga a garantia de uma gratificação constante. Pois é, o filme é muito mais inteligente e verdadeiro do que esse clichê explicativo.

Um exemplo. O pai de João Guilherme tolera que o filho estoure um rojão na sala quando o Vasco marca um gol. Mas é melhor a gente não se apressar em julgar e condenar: o pai também exige que o moleque trabalhe para pagar ao menos a metade da prancha de surfe que ele quer.

Quase todos os pais se reconhecerão nessa mistura em que coexistem a fascinação pelas façanhas do filho (deixe, que esse menino vai longe) e as tentativas desesperadas de inculcar nele uma ética do esforço. Esse paradoxo é o drama básico de todos os pais modernos.

No começo de sua "carreira" de traficante, João Guilherme vivia na casa de família junto com o pai, que se separara e estava gravemente doente. Enquanto o pai esperava a morte confinado no seu quarto, cocaína e maconha rolavam soltas nas animadíssimas reuniões organizadas pelo filho na sala da casa.
O espectador talvez se indigne: o pai está cego? Não vê o que está acontecendo? Ou então: como o filho faz a festa enquanto o pai está morrendo?

Mas uma outra leitura é sugerida pelos bonitos planos em que Mauro Lima enquadra frontalmente a casa do Jardim Botânico ou mostra o pai se virando na cama no meio da noite: o quarto do pai doente e a sala da bagunça não são mundos separados.

A contradição é só aparente entre os desmandos do filho e a agonia do pai: talvez, no fundo, o pai queira mesmo o barulho da festa que não o deixa dormir.

É sempre assim. Os filhos são tudo o que nos resta para acreditarmos que a vida continua, e eles têm a tarefa de serem "felizes" para compensar as amarguras de nosso tempo que se acaba. Condenamos os excessos nos quais eles se engajam, mas é apenas "pelo bem deles". O gozo dos filhos, por mais que seja reprovado, é um espetáculo que consola os pais da inelutabilidade de sua própria morte.

João Guilherme Estrella foi traficante de droga. Mas o verdadeiro traficante nunca toca na droga; ele só vende. Para fazer a diferença entre traficante e usuário, a lei só pode indicar critérios quantitativos, que são freqüentemente incorretos: João Guilherme movimentou enormes quantidades de cocaína, mas ele mesmo chegou a cheirar, numa semana, o despropósito de cem gramas. A juíza viu mais o drogado que o traficante. Com razão: ao longo de sua "carreira", João Guilherme não acumulou nenhuma reserva de dinheiro nem organizou uma quadrilha, ele apenas viveu anos na ânsia de uma fruição frenética. Durante o processo, a juíza perguntou a João Guilherme se ele sabia que estava fazendo algo errado ou ilegal.

João Guilherme respondeu que ele não tinha muito clara a distinção entre o que é certo e o que não é. Claro, ele devia saber que algumas substâncias são ilícitas por lei. Mas há uma distinção mais profunda que muitos perdem -não só os toxicômanos, também todos os entusiastas que, a mando dos pais, saem à conquista do mundo. Ou seja, todos nós, quem mais quem menos.

Há um momento, no filme, em que João Guilherme e alguns amigos cheiradíssimos circulam de carro pelo Rio lançando um grito comum: "O Rio de Janeiro é nosso!!!". Que o Rio fosse dele -aliás, que o mundo fosse dele- era tudo o que o pai de João Guilherme queria. E é tudo o que qualquer pai quer para o filho, não é?

Um comentário:

  1. Antes de expressar minha opinião acerca deste teu post, gostaria de expressar duas dúvidas: a primeira é sobra a autenticidade deste blog (serás mesmo o Contardo Calligaris?), a segunda é sobre a escassez de comentários (teus fãs não sabem sobre a existência deste blog?).

    Bom, quanto ao filme, fui ao cinema assistir a Meu nome não é Johnny depois de ler uma crítica feroz ao filme no site UOL. Se a crítica diz que é ruim, pensei, o filme deve ser muito bom. Não me enganei. Adorei o filme - o roteiro, o Selton Mello, a Cássia Kiss e todo o elenco da penitenciária.

    Quanto ao teu comentário sobre o desejo dos pais em relação aos filhos, concordo em parte. Eu, que não tenho filhos, permito-me o ridículo de projetar em minha cachorrinha meus florescentes instintos maternos. Eis que na semana passada, estávamos nós passeando pela Avenida Osvaldo Aranha, uma das mais movimentadas de Porto Alegre, quando, de repente, senti uma estranha leveza na guia: a cadela havia conseguido escapar do enforcador. Vi-a alguns metros adiante, correndo feito doida avenida afora, na peraltice dos seus sete meses. Entrou em lojas, pulou em pessoas, atravessou ruas. Mas o que mais me assustou não foi a iminência de perdê-la, mas a minha surpreendente serenidade. Quando a capturei e percebi que eu é que tinha colocado o enforcador de modo equivocado em seu pescoço, refleti sobre a razão deste meu ato falho e cheguei à conclusão de que se me mantive serena durante a confusão toda foi para gozar melhor daquela liberdade surrupiada pela minha cachorra. Na verdade, eu é quem queria me desvencilhar dos meus enforacadores todos e sair correndo avenida afora. Mas na falta de coragem, passei a procuração para a Diná, que não me decepcionou.

    Mas, se alguns pais permitem certas liberdades aos filhos para poder compensar o próprio excesso de responsabilidades, o que dizer daqueles pais supercastradores? Por que também eles não têm esta vontade de ver o filho gozar o que eles não puderam?

    Outra questão que me vem à mente é: o que tudo isso tem a ver com o fato de um número cada vez maior de casais optarem por não ter filhos? Será que eles já se permitiram tudo a ponto de não precisar passar esta bola para terceiros tocarem?

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