17 abril 2008

O trauma do amor


Todo amor busca compensar um desastre amoroso passado; somos feridos antes da batalha

NESTES DIAS, reencontrei Gérard Pommier, um colega e amigo que não via há quase 15 anos. Ele está de passagem pelo Brasil, palestrando.

Num fim de tarde, sentados na minha cozinha, colocamos a conversa em dia: filhos, trabalho e, claro, divórcios, separações e novos amores.

No capítulo "divórcios e separações", prevaleceu o tema (tragicômico) das indenizações financeiras. Como era de se esperar numa conversa entre homens, constatamos a curiosa contradição entre a reivindicação feminina de autonomia e, por outro lado, o fato de que muitas mulheres, ao se separarem, exigem uma reparação monetária.

Por estarmos ambos sóbrios, não discutimos o fundamento das pensões alimentícias para as crianças nem o da retribuição pelos anos em que uma mulher pode ter renunciado à sua vida profissional para se dedicar ao lar. Apenas estranhávamos o tipo de demanda raivosa que dá a impressão de pedir indenização pelo amor perdido.

Nos homens como nas mulheres, os amores que acabam deixam a sensação de um dano quase físico, material ("retiraram uma parte de mim") -um dano, portanto, que poderia ser compensado. Deve ser por isso que tanto os homens quanto as mulheres, às vezes, "curam" as dores de uma separação com aquisições extravagantes. "Ela me deixou?

Compro uma moto."

Mas as mulheres, freqüentemente, preferem que a reparação do dano seja o ônus do ex-parceiro. Mesmo quando a iniciativa da separação foi da própria mulher (ou compartilhada por ela) e não houve "infidelidade" do lado do homem, as mulheres tendem a viver a separação como uma traição, como uma crueldade que lhes foi feita, uma sacanagem.

Há como explicar essa diferença, mas isso, hoje, não vem ao caso. O fato é que a conversa com Pommier foi interrompida porque eu fui assistir ao filme de Wong Kar-wai, "Um Beijo Roubado", que acaba de estrear. Pommier, que já tinha visto o filme na França, prometeu que ele tinha a maior relação com nossa conversa daquela noite.

De fato, o filme de Kar-wai é uma esplêndida elegia sobre o trauma amoroso. Os quatro personagens principais são todos inválidos da guerra das paixões. Ficam num canto lambendo suas feridas ou saem pelo mundo afora para esquecê-las ou cicatrizá-las, mas, de qualquer forma, para eles, um novo amor é a tentativa de compensar um desastre passado, que os deixou sem chaves para as portas da vida.

Para um psicanalista, é um prato cheio: confirma-se, indiretamente, a idéia de que nos apaixonamos pelos outros porque não nos foi permitido ficar com a mãe e ou com o pai. Todo amor corrigiria uma grande decepção amorosa, forçada e originária, todo amor seria um paliativo contra as dores da renúncia a nossas paixões edipianas. Ou seja, atrás de nossa vida amorosa, sempre há um dano inicial. "Será que alguém paga um dia?", diriam as mulheres evocadas na conversa com Pommier.

Tudo bem, mas o complexo de Édipo, que se tornou sabedoria psicológica comum, não deixa de ser um mistério. Por que seríamos saudosos de uma única relação que nos foi proibida para que todas as outras fossem permitidas? Por que seríamos para sempre queixosos de uma única perda que nos libertou e nos soltou pelo mundo?

Mais misterioso: é raro que a lembrança de nossos primeiros afetos amorosos (com a mãe, especialmente) seja a de um idílio; em geral, ela vem junto com a queixa de termos sido, de uma maneira ou de outra, preteridos ou mesmo traídos. Talvez essa lembrança queixosa seja influenciada pelo que vem depois: a gente veria nossa primeira infância pelo prisma das dores da autonomia, do crescimento e da separação.

Mas talvez haja algo mais, algo que nos torna feridos antes da batalha, queixosos de ter sofrido um dano antes de qualquer amor, inclusive antes daquela primeira relação, miticamente feliz, com a mãe. Talvez a sensação de que fomos traídos, e não nos foi dado o que queríamos e esperávamos anteceda o amor e suas frustrações. Talvez todos os amores, inclusive o edipiano, sejam apenas compensações frustrantes por um dano que, aliás, inevitavelmente, eles renovam. Mas de que dano estou falando?

De qual sensação originária de que o mundo sempre nos priva porque nunca responde à altura de nossos pedidos?

A resposta seria complicada e incerta, mas há um atalho. Pergunte para qualquer jovem mãe esbaforida: "Afinal, o que quer um bebê?".

2 comentários:

  1. nem me fale, caro amigo, sobre isso...que tenho páginas e páginas lidas e escritas a respeito...infindáveis..por mais que leia a respeito, escreva sobre o tal do amor...e fale dele comigo mesma e com meu analista...só posso dizer que é muito mais que um trauma...é um soco no estômago tão desejado e paradoxalmente tão temido... vc define bem mas no fundo sabe que o tema é inesgotável, não tem modelo, só tem vivência...e essa é individual, muito mais do que coletiva...né?
    beijo e saiba que a guerra do amor... é batalha? ora..é busca...ou será encontro?
    cara, nem quero pensar mais a respeito, tanta porrada e tanta felicidade, tudo ao mesmo tempo, é assim que sinto o amor homem-mulher...sucessão de embates, e trocas boas e de tensões fora do contexto...mas, ainda bem, tem ocasiões em que tudo flui como numa obra musical maravilhosa... o compasso é perfeito, os egos se diluem, a gente se vê numa redoma de plenitude e o amor sem traumas também acontece...ponto pra nós, que conseguimos conhecer esses momentos e essas pessoas que nos provam o doce sabor do amor destraumatizante...ainda existe, ainda bem...

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  2. que tal o mito do andrógino evocado no amor platônico - não no sentido usado hj pelo senso comum, mas no sentido platoniano mesmo? um bb quer a completude da simbiose dos tempos uterinos...completude impossivel materialmente, fisicamente...mas possivel na fantasia lirica da paixão, na ideia do amor que a tudo completa. bom seria se pudéssemos com mais facilidade compreender que há muitos amores possíveis. amor de homem/mulher, de mãe/filho, entre amigos queridos, amor por nossas crenças, nossos ideias, pelo mundo que nos cerca, pela vida, nossos projetos, livrfos, sonhos, músicas...prazeres indizíveis a gente encontra quando descbre que sair do útero é buscar a completude na infinidade de possibilidades da vida. e nas suas impossibilidades também.o amor é múltiplo, assim como a vida. a completude total é a morte e desejar é o segredo da vida. só não desejamos algo no útero e no túmulo. o espaço entre eles é o desejo.

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