05 junho 2008

O luxo, Dorfles e Saint Laurent



As marcas de luxo prometem um mundo encantado: um devaneio de prazer e poder

BASTA TRANSITAR por saguões de hotéis e salas de espera de aeroportos para descobrir que, pelo mundo afora, proliferam publicações suntuosas (papel glacê e quadricromia), cujo tema é o luxo. Nessas revistas, as matérias, em geral, exaltam a vida prazerosa de quem consome os objetos propostos nos anúncios.


Dana Thomas, em "Deluxe - Como o Luxo Perdeu o Brilho" (Campus), conta como, em poucas décadas, fabricantes artesanais de produtos quase únicos (e por isso caríssimos) se transformaram em marcas que devem boa parte de seu faturamento a acessórios industrializados, acessíveis à classe média. Eis a proposta: você não pode gastar uma fortuna para o terno ou o vestido de uma marca de luxo, mas, por um preço compatível com seus recursos, pode comprar um perfume, um cinto, uma carteira ou uma bolsa da mesma marca.


Ora, para que você deseje esse fragmento de luxo, é necessário que a marca prometa o acesso a um outro mundo, encantado: um devaneio de prazer e poder. Como?


Por exemplo, as marcas concentram seus comércios em ruas ou shoppings especializados (como o Cidade Jardim, que acaba de abrir em São Paulo), que são universos oníricos, separados das cidades reais nas quais vivemos e iguais entre si, de São Paulo a Milão. Ou ainda as marcas financiam revistas que são a imprensa dessa Disneylândia global: mulheres e homens bonitos, palácios, jatinhos e, ao lado desse catálogo do inalcançável, os acessíveis acessórios, que são chamados bens de entrada ou de ingresso.


Falando em ingresso, a modesta compra de um acessório vale mesmo como a aquisição de uma entrada de cinema, com a diferença de que, neste caso, você terá na mão um pedacinho do cenário, alimentando assim sua ilusão de fazer parte da história. Conseqüência: não é raro que alguém passe as férias hospedando-se em espeluncas ou sendo enlatado pelas companhias aéreas, mas volte triunfante com um novo acessório cujo valor teria sido suficiente para que ele vivesse férias verdadeiramente prazerosas.


Em suma, a indústria do luxo se parece, hoje, com o comércio de lembrancinhas na porta dos santuários: a posse da "relíquia" produziria a santidade do peregrino. Eu cismava nesse estado de espí- rito quando, logo numa revista de luxo, "THI" (fevereiro/maio 2008), entre iates e relógios, esbarrei nu- ma entrevista concedida por Gillo Dorfles.


Dorfles, designer, pintor e professor de estética, é o autor de um grande livro, "O Devir das Artes" (Martins Fontes), que li no começo dos anos 1960 e foi minha porta de entrada na arte contemporânea. Ele tem hoje 98 anos, mas não é nada rabugento. Cito a entrevista: "O design é, sem dúvida, uma das bases de nossa vida relacional.

Com o declínio do artesanato, o objeto produzido industrialmente se tornou objeto de uso cotidiano. Do talher ao carro, dos sapatos aos esquis, do móvel ao computador, trata-se sempre de objetos produzidos em série. O design leva em conta o aspecto funcional, mas sempre com um quociente estético. Houve um aumento da esteticização da vida cotidiana pelo design, (...), enquanto em épocas anteriores, o objeto de uso era uma coisa amorfa, sem caraterísticas estéticas... A população é educada artisticamente pelo design, pela arquitetura, pela moda, muito mais do que pela escultura ou pela pintura de vanguarda".


Para Dorfles, o cuidado com a dimensão estética do mundo melhora nossa relação com as coisas, com os outros e com nós mesmos.


É fácil aplicar essa consideração, por exemplo, à obra de Yves Saint Laurent, que morreu nestes dias: sua industrialização do luxo (da alta costura ao prêt-à-porter) espalhou uma nova estética feminina que certamente contribuiu a transformar o lugar das mulheres no mundo.


Outro exemplo: quando escolho um espremedor de laranjas, meu cuidado com a forma e as cores (e não apenas com a funcionalidade) humaniza minha relação com quem, a cada manhã, espreme minha laranja.


Concluo com Dorfles. Os fragmentos de ilusão vendidos pela indústria do luxo satisfazem a incerteza narcisista de emergentes inseguros, que, não podendo comprar seu lote no "paraíso", ostentam a bugiganga promocional do empreendimento. Mas talvez, na popularização dos apetrechos do luxo, também se expresse o desejo de um mundo em que a elegância seria uma maneira gentil e mais humana de ser. Tomara que Dorfles tenha razão.

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