19 junho 2008

Pichações


O pichador impõe sua assinatura na cidade como as grifes tentam fazê-lo no corpo da gente

NA SEMANA passada, em São Paulo, um estudante de artes visuais da Belas Artes recrutou 40 pichadores para pichar sua escola. Ele declarou que esse seria seu trabalho de conclusão de curso, "uma intervenção para discutir os limites da arte e o próprio conceito de arte". A "prova" foi interrompida por seguranças e pela polícia.

Nos anos 1950, em Milão, vi minha primeira pichação. Era um resto do passado. O fascismo (sobretudo em seus sobressaltos finais, em 1944) escrevia motos triunfalistas pelos muros da parte da Itália que ainda controlava. No caso, a escrita original dizia "venceremos", assinado pelo "M" de Mussolini. Alguém completara a inicial "M" de maneira que o signatário daquela patética declaração fosse Macário, um comediante famoso. O regime tinha coberto a pichação com uma mão de tinta, mas ela continuava legível.

Duplo escárnio: na pichação e na futilidade da tentativa de apagá-la. Nos anos 1960, pichei a minha parte. Já contei esta história: numa noite de 68, com amigos, cobri a universidade de Milão com o nome de um novo semanal: "Servir ao Povo".

Outros pichadores, em horas mais altas do que as da gente, acrescentaram, embaixo de nossas pichações, um comentário (com o qual, aliás, eu concordava): "Eu não sirvo a ninguém, que o povo se sirva sozinho". Nesses dois casos, as pichações eram políticas: tentavam envolver o leitor no diálogo e, eventualmente, na ação.

As coisas mudaram. Nos anos 1980, no metrô de Nova York, os vagões eram cobertos por dois tipos de "intervenções" (que nem sempre eram fáceis de distinguir). Os grafites quebravam a monotonia urbana inventando e impondo uma revolta estética. As pichações propriamente ditas eram "tags", assinaturas: delimitavam, no espaço público, as zonas de influência e de alcance das gangues -como quando um cachorro demarca seu território depositando um pingo de urina em cada poste.

A resposta da prefeitura foi o trabalho incansável de apagar; o cuidado com a coisa pública não desistiria: "A rua é de todos -se você a assina de noite, apagaremos seu nome de dia, a cada dia".
Claro, a distinção entre grafites e pichações não é estanque. Um pichador, como Jean-Michel Basquiat, tornou-se um grande artista, em grafites e telas, e algumas raras pichações têm uma beleza caligráfica. Além disso, nem todos os pichadores de hoje são apenas "assinatários" compulsivos; alguns se consideram vanguarda artística -devem pensar, por exemplo, que eles assinam os muros como Marcel Duchamp podia assinar um urinol e, pela virtude de sua assinatura, transformá-los em arte.

Mas o gesto de Duchamp era, entre outras coisas, a denúncia irônica e premonitória de uma arte em que a assinatura do artista contaria mais do que o objeto produzido. Ao passo que, a partir dos anos 1980, em sua grande maioria, os "tags" (marcas e assinaturas) parecem participar do espírito da época: eles manifestam uma paixão abstrata de marcar o mundo não por mérito ou por graça, mas a ferro e fogo. No fundo, a vontade de pichar, hoje, é o equivalente "hip", "pop" e violento, no hábitat urbano, do que leva as grifes a querer "tatuar" o corpo da gente.

Alguém dirá que o pichador, numa sociedade de "egos" vaidosos, tenta apenas conquistar um lugar ao sol.

Cá entre nós, não é verdade que, no Brasil de hoje, por mais desigual e injusto que o país seja, o jeito que sobra para deixar sua marca consista em contribuir à feiúra e à brutalidade ambientes pichando a assinatura da gente. Há mais o que fazer, inclusive no campo das intervenções urbanas não autorizadas pelo poder público.

Ao jovem estudante da Belas Artes, aconselho que se debruce sobre as "intervenções" produzidas o tempo todo por artistas nacionais. Uma que acho tocante, entre tantas, é a de Tom Lisboa com suas polaroides invisíveis, em Curitiba (www.sinTOMnizado.com.br/tomlisboa).

Se eu fosse a Belas Artes, constituiria um júri isento de artistas, arquitetos e professores e proporia ao candidato um teste: que ele olhe para dez fotografias da paisagem urbana paulistana e diga não o que ele conhece (isso, provavelmente, ele consideraria intolerável e repressor), nem suas especulações sobre arte ou sociedade, mas, simplesmente, o que ele vê. Se ele souber ver, bom, que sua pichação valha como trabalho conclusivo.

Afinal, ele está terminando um curso de artes visuais.

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