03 julho 2008

Ser homem ou mulher


A anatomia é o destino? Talvez, mas há lugares em que a mulher pode escolher ser homem

NOS ANOS 1960, "descobrimos" que a identidade de cada gênero, masculino, feminino ou outro (há outros, sim), era construída e imposta pela cultura em que vivíamos. Ou seja, nosso sentimento íntimo de ser homem ou mulher dependia dos valores que nos eram transmitidos: "alguém" nos oferecera bonecas ou soldados e nos propusera futebol ou costura.

A descoberta encorajou a militância igualitária, os papéis sociais de homens e mulheres se aproximaram e, enfim, tornou-se possível sentir-se homem e cuidar das crianças ou fazer bordado, e sentir-se mulher e pensar na vida profissional ou entrar no exército. Isso, sem que ninguém se atormentasse com dúvidas excessivas sobre sua identidade viril ou feminina.
Nas últimas décadas, houve um refluxo: hoje, sentir-se homem ou mulher nos parece ser, antes de mais nada, um efeito da diferença biológica entre os sexos.

Talvez seja por causa das próprias mudanças que mencionei acima: as diferenças culturais entre gêneros se tornaram menos relevantes e procuramos outras, mais "sólidas".

Mas muitos dirão que aconteceu o seguinte: os avanços da ciência mostraram que, na constituição das identidades de gênero, hormônios, genes etc. contam mais do que as palavras e os comportamentos. Ou seja, pouco importa que eu vista você de renda ou de farda, você será ou se sentirá homem ou mulher como mandam a química e a física de seu corpo.

Paradoxalmente, essa posição, que pretende ser materialista, parece apostar na separação de corpo e mente, como se um mundo "real" de genes e hormônios existisse separado do da fala e dos atos da gente (que, cá entre nós, não é menos real). Acho mais provável que haja um mundo só, em que interagem fenômenos descritos de jeitos diversos, mas que pertencem a uma única realidade, a nossa, feita de descargas hormonais, obrigações indumentárias e comportamentais, genes, xingões, chapoletadas, neurotransmissores, conselhos, amores e carícias.

Além disso, é bom não esquecer que a primazia atual das explicações "anatômicas" é, por sua vez, um fato cultural. Ela é a evolução esperada da cultura ocidental moderna, que promove, dessa forma, sua melhor idéia: a de uma humanidade comum a todos, além das diferenças culturais. Por exemplo, para justificar a existência de direitos humanos universais, nada melhor do que uma definição da espécie a partir da biologia comum e não das culturas, que divergem.

Seja como for, o clima de hoje sugere que a anatomia seja o destino. Nesse quadro, é bom meditar sobre um extraordinário artigo de Dan Bilefsky, no "New York Times" de 25 de junho (em www.nytimes.com, procurar "Woman as Family Man"). Bilefsky viajou pelas montanhas do norte da Albânia, onde sobrevivem os restos de uma cultura tradicional, regida por um cânon rigoroso que, entre outras coisas, prescreve a vendeta entre famílias, de geração em geração: vocês matam um dos nossos, nós mataremos um dos seus -sendo que só podem matar e ser mortos os homens das respectivas famílias. "Abril Despedaçado", de Ismail Kadaré (Companhia das Letras), dá uma boa idéia do clima local. Quem não leu pode assistir ao filme homônimo, de Walter Salles, que transpôs o romance de Kadaré para o norte do Brasil no começo do século 20.

Pergunta: o que acontecia, numa cultura como essa, quando só sobravam as mulheres de uma família? Pois é, no caso, encorajada pelo fato de que, nessa cultura, ser mulher era especialmente chato, uma virgem, livremente, podia decidir ser homem. Ela cortava o cabelo, vestia-se de homem, carregava faca e arma, sentava-se com os homens e com eles rezava na mesquita, matava e era morta nas vendetas e tornava-se patriarca da família.

Belefsky encontrou e fotografou várias mulheres-homens, na faixa dos 80 anos, mulheres que, 60 anos atrás, virgens, renunciaram à vida sexual e decidiram ser homens. E, de fato, sentiram-se e foram homens. Na verdade, ainda são: no pleno exercício de seu patriarcado.

O que assombra nessa história, aliás, não é só a construção cultural do gênero, mas a incrível liberdade que se revelava possível numa sociedade estritamente tradicional (a gente pensa, em geral, que a liberdade de escolha seja coisa exclusivamente nossa).

Queria prestar homenagem a Ruth Cardoso. O jeito foi escrever sobre algo que, onde quer que ela esteja hoje, talvez a interesse.

5 comentários:

  1. Muito bom, Ruth Cardoso ficaria lisonjeada. Abs.

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  2. Olá Contardo,
    Meu nome é Paula Santisteban e sou cantora, estou lançando um projeto digital do meu trabalho. Adoro os seus textos e gostaria de entrar em contato com você para apresentar-lhe uma canção sobre a qual você poderia escrever algo. O meu site é www.paulasantisteban.com.br e o e-mail da minha produtora é karrankasonora@karrankasonora.com.br.
    Aguardo um retorno,
    Obrigada

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  3. mulher sou eu , homem é você, por isso eu jogo futebol e você me prepara a comida, sou sua fêmea porque penso no nosso sustento, amor o macho que você é quando se enfeita para me receber quando volto cansada do trabalho. Se peço para que dance para mim, você me brinda com seus volteios sensuais, eu me alegro e recomeço a reconquistá-lo. Isso, em dias alternados, para que possamos trocar os papéis. Quando eu cozinho para agradar seu paladar, você me brinda com um jeito protetor e nos amamos assim, do nosso jeito, sou macha, você é fêmeo, quando isso é bom para nós dois... talvez por isso, agora que o futuro chegou, nos entendemos tão bem e aceitamos as antigas diferenças, que só o amor, entre nós, é capaz de ultrapassar. Parabéns, Contardo, ser homem ou mulher é ser gente, com sentimentos e atitudes, independentemente da forma...é mesmo coisa de conteúdo, aprendizado, crescimento e muita paixão pela vida em comum ( dos dois gêneros).
    beijo
    Cida Torneros

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  4. O próprio Contardo Calligaris me disse que este blog não é dele.
    Quem faz?
    Estranho isto, não é?
    Como ele disse: "mistérios da NET".
    Vc é fã deles todos: Danusa, Marcelo, Contardo? e faz os blogs?
    Seria bom esclarecer.
    É esquisito isto de deixar as pessoas falando com Contardo aqui, se não é com ele que falam :)
    cada uma...

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  5. não importa se quem seja, o importante é que os textos são deles, não? A autoria também, né? Seja lá quem for o dono do blog... fez bem.

    Este texto é ótimo descritor da liberdade e de libertação.

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