O demônio do meio-dia é o tédio moderno, efeito de um mundo com poucos mistérios |
DESDE PEQUENA, Zoé, 9 anos, adora filmes e histórias de terror. Seus pedidos espantam a moça da locadora de DVDs, que, provavelmente, duvida da sanidade mental dos pais.
De fato, Zoé assiste com prazer a filmes que, às vezes, deixam insones seu irmão mais velho, suas baby-sitters e mesmo sua mãe. Talvez Zoé seja cinéfila a ponto de assistir aos ditos filmes com o distanciamento de um crítico dos "Cahiers du Cinéma". Ela desmontaria os "truques" destinados a produzir espanto nos espectadores e, com isso, os filmes lhe proporcionariam uma experiência parecida com a de um bom exorcista: ela venceria o mal desvendando seus estratagemas.
Mas a paixão de Zoé pelas histórias de terror tem outra explicação possível, que me apareceu quando Zoé quis que sua festa de aniversário fosse o cenário de um filme.
Com a ajuda de um cineasta amigo da família, Zoé e seus convidados foram co-autores e protagonistas de um curta que, claro, é a história do aniversário de uma menina, durante o qual um monstro diabólico e sedento de sangue etc.
Graças ao filme (que, aliás, é bem legal) pensei o seguinte: talvez Zoé queira sobretudo convencer-se de que sempre, mesmo no dia ensolarado de seu aniversário, há zonas de sombra, por onde andam seres repugnantes e perigosos. Alguém perguntará: "Mas por que ela gostaria de pensar assim?"
Pois é, eu acho que essa idéia é, para qualquer um, uma fonte de alívio. Explico por quê.
O Salmo 90 (na numeração Clementina) expressa a esperança de que Deus nos guarde tanto das abominações "que circulam pelas trevas" quanto "do demônio do meio-dia". Sobre o tal demônio do meio-dia muito foi escrito e dito: diferente dos diabos que se escondem nos cantos escuros, o que será esse malefício que nos espreita justamente quando o sol está no zênite e o mundo nos aparece sem sombras?
Uma leitura moderna diz que o demônio do meio-dia não é um bicho do inferno, mas é um sofrimento insidioso, específico de uma época em que faltam cantos escuros.
Ele é nossa própria tristeza, a depressão e o tédio produzidos por um mundo com poucas sombras e poucos mistérios.
Em outras palavras, as luzes da razão e da ciência acabaram com aquele sentido que só uma transcendência (divina ou diabólica, benéfica ou maléfica, tanto faz) podia conferir à vida. Por excesso de luz, em suma, o mundo perdeu seus horrores, mas também seu encanto; com isso, é preciso que Deus nos proteja do demônio do meio-dia, ou seja, do tédio e da tristeza.
Ao inventar cantos escuros e ao povoá-los de "troços" inquietantes, Zoé está se protegendo contra o demônio do meio-dia -com toda razão, pois esse é provavelmente o mais pernicioso de todos. Muito melhor se deparar com Freddy Kruger do que não achar graça no mundo.
"Filosofia do Tédio", de Lars Svenden (Zahar), é uma brilhante meditação sobre a dificuldade moderna em nos interessarmos pela vida, uma vez que ela não é mais justificada pela palavra divina ou por nossa luta heróica contra os "troços" que circulam pelas trevas. Para Svenden, contra o tédio, ainda não inventamos nada melhor do que o remédio do Romantismo: uma mistura de anestesia (drogas lícitas e ilícitas) com transgressões que deveriam provar que estamos vivendo grandes aventuras e experiências "incríveis". Se for para escolher, prefiro os esforços de Zoé para repovoar o mundo de monstros e demônios.
Mas há uma terceira via. Li, nestes dias, "O Olho da Rua", de Eliane Brum (Globo). Brum, repórter especial da revista "Época", reúne dez grandes reportagens escritas entre 2000 e 2008. Fazia tempo que um livro não me tocava tanto. Que Brum fale das parteiras do Amapá, da guerra em Roraima, dos velhos da casa São Luiz para Velhice, ou mesmo que ela acompanhe o fim da vida de uma paciente terminal, seu texto é uma verdadeira alegria - pois ele nos lembra, simplesmente, que o mundo importa, que ele vale a pena. Como ela consegue?
O tédio moderno é uma forma de arrogância: a vida é chata porque nós seríamos maiores que sua suposta trivialidade insossa; tendemos a menosprezar o cenário onde nos toca viver, como se ele fosse demasiado banal para nossas façanhas. Pois bem, o segredo de Brum é o oposto disso, é uma extraordinária humildade diante do que existe.
Quando Zoé cansar de inventar monstros para dar sentido ao mundo e à vida, vou lhe sugerir o livro de Eliane Brum.
Parece que muitas vezes a busca por "cantos escuros" recai em um esquema pré-determinado de ações, como se fosse uma insistência em encontrá-los. O tédio é um elo da cadeia da obsessividade?
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ResponderExcluirObrigada por baixar minha bola.
ResponderExcluirBjoka!
Este texto me lembra outro texto seu sobre a alegria de vida que um pai passa para o filho, no filme peixe grande e nas vezes que seu pai falava que vc tinha um animal em casa para seus amigos no telefone.
ResponderExcluirAbraço
Você nos faz refletir sobre tantas coisas!!! A Zoé parece ter percebido desde cedo que os monstros e os cantos escuros estão por toda parte e é possível enfrentá-los. Melhor trazer o demônio para a festa. Já a pichadora da Bienal diz que sente um enorme vazio e encontrou sentido para a vida nas pichações. Para ela, seria como a droga no Romantismo? Lembrei-me de uma passagem de Dom Casmurro. José Dias se sentiu humilhado por não lhe permitirem carregar o pálio, a distinção máxima na passagem do Santíssimo. Só pôde levar a tocha. "E contudo havia outros que também traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas também não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra."
ResponderExcluirMaria Teresa
putz
ResponderExcluirisso é que foi pensamento profundo! amei o blog e vou acompanhar!
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ResponderExcluirNossa, obrigada por me dar tantos toques importantes... na verdade, verdadeiros cutucões.
ResponderExcluirum abraço,
clara lopez
oi Contardo, como sempre, dando show em termos de refletir sobre a montanha russa que é a vida, né? aliás, foi vc que me disse isso uma vez, lembra? aprendi então que monstros e deuses se revezam, para nos pegar a cada curva ou de subida ou descida, e que se há um livro assim tão gostoso de ser lido, deve haver a tal salvação... esteja ela nas almas dos que ainda se emocionam como vc com textos humanos, verdadeiros, expressivos...aliás, a Zoé mora no coração de todos nós, e nos cantos escuros dos nossos medos ou interrogações...melhor quando podemos subir e descer fazendo piruetas em oito, nos ares da imaginação e da realidade...obrigada por ser tão intensamente lúcido e tão despojadamente ingênuo. beijo
ResponderExcluirCida Torneros
O sofrimento é a mesma coisa que o mal. É assim que Zoé pensa. Os mostros são maus porque causam sofrimento.
ResponderExcluirUm dia Zoé é repreendida pelo pai: deve ir pra cama sem janta,por ter feito uma travessura. O pai é mal, o pai é um monstro.
No dia seguinte, o pai,vendo a filha triste se enternece e lhe diz: "Filha,se eu fiz isso foi pelo seu bem"
Zoé se depara com um paradoxo: como pode o pai ter causado seu sofrimento e ainda assim, ser bom?
O pai não é um monstro,mas ainda sim,ela mesma já viu o pai bravo,transformado em monstro várias vezes.
Agora vendo os filmes de terror na tevê, a menina pensa: será tAmbém o paizinho um monstro? não pode suportar essa possibilidade: desliga a tevê.
Zoé não sabe quem é monstro e quem é bom: antes era fácil,mas agora tudo se embaralhou. também o professor pode constrangê-la para o seu bem. se a coleguinha puxa seu cabelo,ela é uma menina má; os pais, os professores são sempre bons.
Agora Zoé é crescidinha e obedece aos poderes constituídos. O mal perpretado pelo Estado,pela polícia, é bom. Até o bem paraticado fora da lei é mal.
Zoé se sente fraca e indefesa: o que pode ela contra tanta bondade?
Depois de muito pensar, Zoé descobre uma arma contra o terror: a compaixão. Sentir também o mal como um bem. Os meninos de rua,por exemplo,são uma abominação,mas a sua mera existência torna a vida uma coisa valiosa; sem eles não haveriam filantropos, ongueiros, orientadores,demagogos,toda essa gente que enche a vida de significado.
A transfomação do sofrimento em bem: será essa a etapa derradeira do declínio de nossa civilização?
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ResponderExcluirJá há algum tempo que visito seu blog, porém, só agora resolvi comentar. Criar demônios é uma forma interessante de lembrar a todos que não estamos "partidos ao meio", somos bons e maus ao mesmo tempo. A modernidade tentou separar os dois e o que vemos é só confusão. O mal existe até em uma festa de aniversário, até no sol de meio-dia e o grande problema de nossa sociedade é esquecer-se disso.
ResponderExcluirMuito bom o texto, gostei muito.
Abraço
Estou tentando trazer para a festa, também, as minhas proprias sombras...ê trabalhinho dificil.
ResponderExcluirHj esta frio em Paris e suas palavras me aquecem!
ah mas seus pés, ou algo na forma de andar... era puro fascínio... agalma
ResponderExcluirpor indicação aportei aqui.
ResponderExcluire gostei muito.
li muita coisa. deixo comentário aqui para sinalizar o quão interessante achei o livro citado.
abraços.