23 julho 2009

Conversando com Ferreira Gullar



A antipsiquiatria liberou os psiquiatras da função de guardiões da "normalidade"


EM 12 e 26 de abril, nesta página, Ferreira Gullar escreveu contra a lei da reforma psiquiátrica (lei 10.216, de 2001). Na época, muitos leitores pediram que me expressasse sobre o tema. Visto que Ferreira Gullar voltou ao assunto no domingo passado, aproveito a ocasião. A lei é dificilmente discutível em suas intenções. Seu texto (link no fim) garante os direitos do portador de transtornos mentais e, em particular, o direito ao melhor tratamento possível, afirmando que a internação deve acontecer quando "os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes" e que qualquer tratamento deve visar "a reinserção social do paciente".

Como discordar? Não decorre do texto de lei nem que se acabe de vez com a internação psiquiátrica nem que se estabeleça um limite abstrato ao tempo de internação (o qual, Gullar tem razão, só pode ser "o tempo necessário", e não um lapso arbitrário). Em suma, o problema não é a lei, mas sua implementação em curso (disposições e meios concretos).

Na minha história, o movimento antipsiquiátrico (que nasceu, emblematicamente, em 1968, com "A Instituição Negada", de Franco Basaglia, ed. Graal) foi um marco contraditório.

Eu fui conquistado pelas implicações ideais do movimento (o direito de ser radicalmente diferente sem ser confinado por isso, a descoberta de que as instituições e a sociedade podem ser patogênicas a ponto de nos enlouquecer, o esforço para reconhecer a loucura na "normalidade" de nossa vida coletiva e para enxergar o semelhante no louco).

Mas nunca consegui acreditar que a doença mental fosse só a consequência da própria exclusão dos pacientes, e, ainda menos, que todo ato terapêutico fosse necessariamente uma tentativa de enquadrar os "dissidentes" mentais. Tampouco conseguia imaginar que, depois da "revolução" (iminente, é claro), viveríamos num mundo sem doença e sem sofrimento mentais.

Gullar tem razão, o movimento antipsiquiátrico (mas não a lei 10.216) acarretou consigo uma negação da doença mental. Atribuir o sofrimento dos pacientes à repressão manicomial de sua diferença era uma ingenuidade que só se explica considerando o seguinte: o movimento antipsiquiátrico foi, antes de mais nada, um movimento de liberação dos próprios psiquiatras, que se recusaram a continuar exercendo uma função de carcereiros e guardiões da "normalidade". Foi, em suma, a rebelião dos psiquiatras contra uma psiquiatria que era, com frequência, estupidamente convencida de que curar os pacientes significasse conformá-los com o preconceito dos terapeutas e da sociedade.

Coisa do passado? Nem tanto. Ainda hoje, uma psicóloga pode querer "curar" a homossexualidade de seus clientes (Folha, 14/07), ou seja, erigir suas ideias (legítimas, aliás) sobre a "normalidade" social ou sexual em critério da "doença" ou do transtorno, desconsiderando o único critério que importa: o sofrimento singular do paciente e sua queixa.

Agora, Gullar, para defender o valor da internação, evoca o exemplo de Emygdio de Barros, que se realizou como pintor nos ateliês de Terapêutica Ocupacional organizados por Nise da Silveira, no Centro Psiquiátrico Nacional. Quem dera! Raramente o manicômio ordinário foi lugar de cura e amparo; em geral, ele foi lugar de transformação de doenças agudas (eventualmente temporárias) em doenças crônicas incuráveis. Nisso, ele se parecia com um hospital geral no qual, pela acumulação de germes resistentes, morrer de uma infecção hospitalar seria mais fácil do que se curar.

Enfim, a implementação da reforma psiquiátrica mal começou. Concordo com Gullar: ela deve incluir a possibilidade de internação em hospital público -com uma transformação radical dos lugares de internação. Essa transformação é impossível sem fechar hospitais irrecuperáveis e, sobretudo, sem uma redefinição dos cuidados em saúde mental.

Ora, contrariamente às minhas próprias expectativas (que eram pessimistas), o trabalho dos atuais Centros de Atenção Psicossocial tem sido humilde e grandioso. Neles, a cada dia, contra trancos e barrancos, a grande maioria dos profissionais de saúde mental está resgatando a dignidade de sua missão. E quem sabe esse resgate de hoje permita também que tenhamos, um dia, hospitais psiquiátricos em que Emygdio, se estivesse vivo, estaria a fim de instalar seu ateliê.

O texto da lei está disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm

5 comentários:

  1. Caros responsáveis pelo site:

    Cadê o artigo de 09 de julho? Vocês não vão postá-lo.

    Cordialmente,

    novaes

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  2. É confrangedor o tratamento a que são submetidos os que, por algum motivo, são apanhados na rede dos cuidados mentais.

    Não tenho ninguém próximo que possa servir de exemplo... Chega, para me horrorizar, aquilo que vejo em reportagens na TV, ou filmes sobre o assunto!

    Abraço.
    António

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  3. Não me sinto capacitada para entrar nessa discussão, mas gostaria de deixar registro sobre experiência familiar em relação ao tema doença mental. Tenho uma sobrinha de 25 anos, mãe de 3 filhos, ano passado ela teve uma crise e tomou "chumbinho" (um veneno para rato, cuja venda é proibida, mas na zona leste é comum a venda de porta em porta), foi levada para o Hospital Geral de Guaianases, depois de uma lavagem estomacal, foi encaminhada para a ala psiquiátrica, e descreveu o que viu nas poucas horas em que ficou confinada: um adolescente que viu os pais serem assassinados e está internado desde então (mais de 15 anos) pessoas nuas e desgrenhadas andando meio adormecidas pelos corredores e funcionários ameaçando amarrar a todos (com uma corda azul). A mãe assinou um termo e a retirou do hospital, mas infelizmente não procurou um tratamento adequado e menos de um mês depois ela se jogou pela janela do apartamento em que morava (5º andar) e sobreviveu. Começou então uma nova etapa do tratamento: ficou internada, os problemas ortopédicos eram graves, ficou mais de um mês com fixador de bacia, deitada sem poder se virar na cama, um mês de internação à base de morfina para controlar as fortes dores. Fiquei várias tardes com ela no hospital e depois de quase um mês obteve alta. Em casa não foi fácil, além das dores havia as crises de dependência causada pelo uso contínuo da morfina, tivemos que voltar várias vezes ao hospital e era sempre um drama a questão do transporte, o hospital não mandava ambulância e ela não podia se sentar, tínhamos que arrumar um carro grande e transformá-lo em um simulacro de ambulância e era sempre muito complicado. No hospital ela foi muito bem tratada na questão física mas nada foi feito em relação ao psíquico, e ela continuava falando em suicídio. O que me causou estranhamento no hospital foi a postura do médico que a acompanhou durante a internação e que a atendeu em outras ocasiões, ele sempre insinuava que ela não tinha do que se queixar, estava ali por opção, que deveria ter pensado antes e o pior, acredito que ele prorrogou o quanto pode o momento de tirar o fixador, quando a levei ao hospital num fim de noite de sábado, fomos atendidas já de madrugada e o médico achou absurdo que ela ainda estivesse com os "ferros" e marcou uma data próxima para a retirada. Quando fomos ao hospital para finalmente libertá-la o médico "juiz" nos atendeu e disse que tiraria o fixador, mas que teríamos que esperar até que todos fossem atendidos, a sala de espera da ortopedia está transbordando de gente (no mínimo 200 pessoas), enquando esperámos e ela sofria na maca, por incômodo físico e ansiedade, fui até a sala onde ocorria o procedimento da retirada dos fixadores e fui informada que qualquer um dos médicos ali dentro poderiam fazar o procedimento e finalmente em questão de segundos ela se livrou do instrumento de tortura. Atualmente, já se passaram 8 meses da queda, ela faz tratamento com um psiquiatra do convênio, toma vários remédios e leva uma vida normal, dentro das possibilidades...

    ProfªSônia Maria.

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  4. Em linhas gerais concordo com vc, na tentantiva de esbocar um meio termo entre a anti-psiquiatria e a necessidade de internacao em determinadas situacoes. Gostei particularmente do paragrafo final sobre a atuacao dos CAPs (eu ja fui otimista, fiquei pessimista, e agora fico na torcida para aumentar o acesso e diminuir o numero de pessoas sem atencao nenhuma). Gostaria de comentar sobre a data do movimento antipsiquiatrico. O Laing publicou o Eu Dividido em 1960 e o Cooper publicou Psiquiatria e Anti-psiquiatria em 1967. Abs

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  5. Sugiro a leitura do texto "Rosenhan e o lado de fora do hospício", onde um pesquisador americano avaliou algumas instituições psiquiátricas americanas: http://rodolfo.typepad.com/no_posso_evitar/2009/07/experimentos-em-psicologia-rosenhan-e-o-lado-de-fora-do-hospicio.html

    Atenciosamente, Rodolfo.

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