03 setembro 2009

Passivo cultural

Nos EUA, um seguro de saúde para todos é uma mudança no que define o país e sua cultura

O PRESIDENTE dos EUA, Barack Obama, tenta cumprir uma das promessas de sua campanha: uma reforma pela qual todos os cidadãos seriam protegidos por um seguro-saúde básico.

Atualmente, o sistema de saúde pública dos EUA protege as crianças, os idosos e os indigentes, mas deixa de molho uma ampla faixa da classe média, que não é indigente, mas não consegue pagar um seguro particular. Mais de 40 milhões de cidadãos, se eles adoecerem gravemente, terão que vender seus bens e se endividar até alcançar a miséria que lhes dará, enfim, direito à assistência gratuita.

Canadenses, europeus, brasileiros etc. estranham que os EUA não disponham "ainda" de algo parecido com, sei lá, a "Sécurité Sociale" francesa ou mesmo o nosso Sistema Único de Saúde: "Como é que pode? A nação mais rica do mundo!".

Culpar a mesquinhez dos cidadãos mais abastados fica ridículo no caso de um país em que a generosidade é uma regra instituída, a ponto que qualquer caridade implica um desconto direto no imposto de renda das pessoas físicas. Será, então, que o liberalismo norte-americano não entende que o custo de um sistema de saúde é compensado pelo que se ganha em produtividade (trabalhadores atendidos prontamente quando estão doentes, mais saudáveis graças à prevenção, menos angustiados pela pneumonia da mãe etc.)? Duvido.

Resta que Bill Clinton não conseguiu promover um plano de seguro-saúde para todos os cidadãos, e, agora, Barack Obama encontra uma oposição que compromete sua popularidade e divide o país.

O curioso é que, conversando por telefone com amigos e conhecidos (sobretudo os que não votaram em Obama), é difícil encontrar, nos EUA, alguém que não concorde com o princípio de seguro-saúde para todos. Mesmo assim, muitos resistem.

Aparentemente, a metade dos cidadãos dos EUA, perguntados se eles querem um seguro-saúde para todos, respondem: "Claro, quem não gostaria?", mas acrescentam: "Não quero que o Estado escolha o médico que vai me tratar" ou "Não quero subvencionar os abortos de adolescentes lascivas e inconsequentes" ou, ainda e sobretudo, "seguro-saúde universal não é coisa de país socialista ou comunista?".

Ora, o plano proposto preserva a livre escolha dos médicos pelos pacientes (sem contar que, nos EUA, a maioria usa convênios que já limitam a dita escolha). O plano tampouco muda o funcionamento das clínicas que praticam abortos. Resta o espantalho do "socialismo": o que ele significa, 20 anos depois do fim da guerra fria? Certo, na boca dos comentadores da oposição, ele é um pretexto político para reanimar as tropas, mas o que faz sua força?

Pois é, o famoso homem da rua, consultado por mim pessoal e telefonicamente, explicou-me que, no "socialismo", o Estado se mete nos negócios da gente e acaba com a liberdade dos cidadãos -o que, aliás, não é de todo inexato. Mas eu insisti: "OK, entendo que um seguro-saúde para todos seria obrigatório, e você não gosta de nada obrigatório; mas será que queremos, para nós e para os outros, também a liberdade de ficar no desamparo nos casos de doença?".

Pois bem, meus interlocutores responderam que eu tinha razão, mas, no fundo, a liberdade, como se expressou textualmente um deles, é também "a liberdade de se foder".

Entendi assim que talvez a mudança proposta por Obama seja muito mais do que uma mudança de gestão da saúde; talvez se trate de uma mudança no que define, há séculos, os EUA e sua cultura.

Não fica claro? Pois é, imagine que, na formação da cultura brasileira, por uma reviravolta da História e das histórias contadas pela literatura nacional, o traço decisivo não tenha sido, por exemplo, a cobiça do colonizador, mas sim o espírito do bandeirante.

Diante da proposta de um seguro-saúde universal, o colonizador cobiçoso poderia responder "Nada disso (os escravos que se virem)" ou, ao contrário, "Boa ideia, vai melhorar o rendimento dos peões".

Mas como reagiria o Anhanguera, sobretudo se a sua procura do ouro tivesse se tornado uma épica aventurosa que define o espírito da nação? Suspeito que, como meu interlocutor estadunidense, ele recusaria, explicando que a vida do indivíduo é um risco absoluto, e que esse é o sentido, o charme e o interesse da aventura.

Em suma, às vezes, os próprios traços que fazem ou fizeram a grandeza de uma cultura se tornam, para ela, um passivo.

ccalligari@uol.com.br

Um comentário:

  1. Olá, Contardo.

    De Porto Alegre, leio teus artigos na Folha. Este me chamou atenção em especial pela situação que o marido de uma amiga está atravessando na Califórnia e que venho acompanhando à distância. Também incrédula pela ausência de um sistema de saúde universal naquele país, enviei teu artigo na minha própria versão para o casal.
    Por achar pertinente para engrossar o caldo da tua argumentação, tomo a liberdade de copiar abaixo comentário postado pelo próprio em um debate sobre o tema.

    Abraço,

    Ana Luiza

    'Racism and the Healthcare Debate

    There’s something being left unsaid in the national healthcare debate. No one is willing to talk about the 800-pound enchilada in the room: Racism. From what I’ve seen of the opponents of universal healthcare, they’re of the Caucasian persuasion. And I ask myself, what does that say?

    I should tell you a few things about myself. I’m white, middle class, and until my recent diagnosis and treatment for cancer, I thought I had me some of that ‘Gold-Plated” insurance coverage I’d been hearing about. It ends up that after fifteen years of paying expensive monthly premiums, my gold-plating wasn’t 24 carrot. On top of having to cover twenty percent of my medical costs, there are some crucial, and very expensive items, that my policy wouldn’t cover.

    I can’t fathom why anyone would be opposed to allowing all Americans access to decent healthcare. I understand the motivation of those who profit from our current system: Insurance companies, pharmaceutical giants, and politicians who take cash from lobbyists. They’re all driven by greed. But what about the average citizen? Why are they against the idea?

    Their argument about not wanting government intrusion doesn’t work for me. Look at Medicare. That’s a government-administered program that provides universal coverage to people starting at age sixty-five. I haven’t heard one opponent of universal health care say that program should be cut. Quite the contrary. These same people kick and scream if anyone dare talk about changes to that truly gold-plated coverage.

    Why then, are people opposed to creating a safety net for all, regardless of age? I can only come to one conclusion. The average citizen opposed to universal coverage is using the “keep government hands off my healthcare” argument to hide the fact that racism, ethnic and economic racism, is driving their opposition. These seem to be the same anti-immigration, English-only folks who use rhetoric and false logic to hide their ugly, self-serving nature. So yes, I think racism is playing a huge, silent role in this all-important issue. That, and the fact that most, if not all, of the opponents to universal healthcare haven’t been truly sick. At least, not yet.

    sam'

    ResponderExcluir