08 outubro 2009

Razão, crença e dúvida



Onde se manifesta a razão? Na arrogância de certezas absolutas ou na capacidade de duvidar?


MEU PRIMEIRO contato com a história que segue foi em junho passado, no blog de Richard Dawkins (www.richarddawkins.net, site que se autodenomina "um oásis de pensamento claro"). Dawkins é o evolucionista britânico que se tornou apóstolo do racionalismo ateu e cético, escrevendo, entre outros livros, o best-seller mundial "Deus - Um Delírio" (Companhia das Letras, 2007).

Mas eis a história. Em 2002, na Austrália, o casal Sam, de origem indiana, perdeu a filha, Gloria, de nove meses.

A menina, a partir do quarto mês, apresentou sintomas de eczema infantil, que é uma condição alérgica que afeta mais de 10% dos bebês e, geralmente, acalma-se ou some aos seis anos ou na adolescência. As causas do eczema infantil não são bem conhecidas; a medicina administra a condição da melhor maneira possível, esperando que passe. O problema é que o eczema (pele seca com prurido) dá uma vontade de se coçar à qual as crianças não resistem, e a pele, ferida, abre-se para qualquer infecção. Foi o que aconteceu com Gloria, que morreu de septicemia.

Não foi falta de sorte: o pai de Gloria é homeopata e, em total acordo com a mulher, medicou a menina só com remédios homeopáticos (insuficientes na condição da menina). Isso até o fim, quando ela definhava pelas infecções internas e externas. Gloria foi levada a um hospital três dias antes de morrer: as bactérias já estavam destruindo suas córneas, e os médicos só puderam lhe administrar morfina para aliviar seu sofrimento.

Os pais de Gloria foram presos, acusados de homicídio por negligência e, no fim de setembro, condenados pela Justiça australiana: o pai, a oito anos de prisão, a mãe, a cinco anos e quatro meses. Segundo o juiz, Peter Johnson, ambos os pais "faltaram gravemente com suas obrigações diante da filha": o marido pela "arrogância" de sua preferência pela homeopatia e a mulher pela excessiva "deferência" às decisões do marido.

Os termos da decisão de Johnson são admiráveis. A obediência -ao marido, no caso-, seja qual for seu fundamento cultural, nunca é desculpa; ela pode ser, ao contrário, o próprio crime. E, sobretudo, o marido é condenado não por recorrer à homeopatia, mas pela "arrogância" que lhe permitiu perseverar em sua crença e em sua decisão diante do calvário pelo qual passava a menina.

A sentença de Peter Johnson é, para mim, um modelo de racionalidade, porque estigmatiza a certeza independentemente do objeto de crença. Ou seja, o juiz não discute o bem fundado da autoridade do marido e, ainda menos, os méritos respectivos da homeopatia e da medicina alopática. Tampouco ele quer limitar a liberdade de opinião, garantida pela Constituição; a sentença penaliza apenas, por assim dizer, a rigidez.

Se me coloco no lugar dos pais de Gloria, não consigo imaginar uma crença, por mais que ela possa ser crucial para mim, que resista à visão do corpinho de minha filha transformado numa ferida aberta e purulenta.

Antes disso, eu (embora confiando, a princípio, na medicina alopática) já teria convocado não só os homeopatas (o que, aliás, seria uma banalidade, visto que a homeopatia é uma especialidade médica reconhecida) mas também todos os xamãs, feiticeiros e curandeiros que me parecessem minimamente confiáveis. E, é claro, embora agnóstico, eu rezaria, sem nenhuma vergonha e sem o sentimento de trair minhas "convicções", pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo que minha razão não alcança.

Se fosse testemunha de Jeová, e minha filha precisasse de uma transfusão (que a religião proíbe), abriria imediatamente uma exceção. Mesma coisa se fosse cientologista, e minha filha precisasse de ajuda psiquiátrica. Sou volúvel e irracional? O fato é que tenho poucas crenças (provavelmente, nenhuma absoluta), e acontece que, para mim, a razão é uma prática concreta, específica: um jeito de pesar e decidir em cada momento da vida.

O surpreendente é que, ao ler os comentários dos leitores no blog de Dawkins, os "racionalistas" parecem tão "rígidos" quanto o pai de Gloria. "A razão" (que eles confundem com uma visão aproximativa do estado atual da arte médica) é, para eles, um objeto de fé, uma crença pela qual facilmente condenariam os "infiéis" à fogueira.

Com o juiz Johnson, pergunto: onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas ou na capacidade de duvidar?

ccalligari@uol.com.br

10 comentários:

  1. Eu sou testemunha de jeová. Concordo com a posição do Calligaris, no sentido de se mover céus e terra para salvar a vida de quem amamos, e assim também faria eu. Mas devo acrescentar que, uma decisão dessas, dentro desta religião (relacionada à transfusão de sangue) trás terríveis consequências, uma vez que isso causaria a expulsão e o consequênte exílio social. Quando se torna Testemunha de Jeová, todo o seu contato social fora da religião é gradativamente cortado. Por consequência seus amigos "de fora" se afastam. Ao ser expulso, os únicos "amigos" que restaram são proibidos de te dar um simples "Bom Dia!".
    Apesar de valer a pena, pela vida de um ente, é um preço alto a se pagar. Quem puder, no entanto, pode evitar.

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  2. "E, é claro, embora agnóstico, eu rezaria, sem nenhuma vergonha e sem o sentimento de trair minhas "convicções", pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo que minha razão não alcança".

    Antes de mais nada, reafirmo que a passagem onde o senhor "enquadrou" o Jô Soares foi um regojizo...

    Professor, na verdade o que me trás aqui é a necessidade de parabenizá-lo, e também agradecer, pelo artigo "Razão, crença e dúvida", particularmente o trecho destacado, que vem relembrar-nos que, apesar de tudo, temos que buscar o caminho da humildade.

    Guilherme Souto - B.Hte - MG

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  3. Obrigada por você sempre trazer esses magníficos textos.
    Esse blog é realmente viciante!!
    Um abraço

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  4. Contardo,
    Você é uma personalidade conhecida, mas deve postar aqui o seu "Quem sou" para informar as pessoas que não o conhecem.
    Parabéns pelo seu blog.
    Abraços,

    Iremar Marinho

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  5. Ao colega Habib Marwan no primeiro comentário...

    Você seria mesmo capaz de escolher preservar suas "amizades", em troca da vida de um filho?

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  6. Alam, pq parou com as postagens? Sou leitora assídua do blog!

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  7. Texto extremanente lúcido... Eu sou ateu, mas me defino como tal porque duvido da existência de deus(es) e isto, pelo menos para mim, é completamente diferente de ter certeza absoluta de que não existe(m) deus(es). Hoje há um "movimento ateu" e, sem sombra de dúvidas, o Richard Dawkins é um de seus maiores porta-vozes, mas eu procuro ter uma visão bilateral das coisas - algo nem sempre fácil, assumo. Aprecio a luta do "movimento" ante o preconceito e a discriminação contra os ateus, afinal ainda hoje somos vistos como indivíduos desprovidos de valores morais e que, portanto, não podemos ser bons filhos, bons pais, bons chefes de família, etc. Além disso, os "amigos" se afastam, algumas portas se fecham... Por outro lado, vejo o ateísmo se converter nessa fé cega no que chamo de "racionalismo das cavernas", que é o que o Contardo Calligaris chamou brilhantemente de "arrogância das certezas". Afinal, o dito "progresso científico" foi, e é ainda hoje, um produto das dúvidas, não das certezas. Lamento ver o ateísmo tomando esse caminho...

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  8. E só para concluir: já consigo ver, num futuro não muito distante, as vozes dissidentes do movimento ateísta serem condenadas à fogueira ou à proscrição...

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  9. Autamente aceitavel,sou estudante de Psicologia, e a alusao feita,por CALLIGARIS,foi de pretensa racionalidade. Etica!

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