10 dezembro 2009

Lembranças de César Benjamin




Quase sempre, para ganhar a cumplicidade de todos, temos de apostar no que é boçal


QUANDO A ditadura chegou, em 1968, aos 14 anos, César Benjamin militava no movimento estudantil secundarista. Preso em 1971, ele ficou na cadeia até ser expulso do país, em 1976. Mais tarde, em 1980, participou da fundação do PT. Em 1995, ele saiu do partido.
Na sexta-feira retrasada, a Folha publicou um artigo de César Benjamin, sob o título "Os Filhos do Brasil".
 
Nele, Benjamin começa por evocar situações de seu cativeiro, em que presos comuns o respeitaram, embora tivessem sido "incentivados" a estuprá-lo.

Logo, Benjamin narra um episódio de 1994, quando ele trabalhava na campanha eleitoral de Lula. Durante um almoço, Lula, ao aprender que Benjamin ficara preso durante anos, teria comentado: "Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta". A seguir, Lula teria narrado como, nos 30 dias que durara sua detenção durante a ditadura, ele tinha tentado "subjugar" (sexualmente) um "menino do MEP" (Movimento de Emancipação do Proletariado), o qual tinha resistido a cotoveladas e socos.

Benjamin conclui que não assistirá ao filme "O Filho do Brasil" porque o "culto à personalidade" sempre contrasta com a "complexidade da condição humana".
Claro, leitores e comentadores do artigo de Benjamin pediram que "os fatos" fossem apurados. Mas quais fatos?

O fato relatado por Benjamin é o almoço de 1994. Quanto ao que foi dito nesse almoço, Silvio Tendler, publicitário, que estava presente, parece confirmar a letra, mas não o espírito da conversa: "Aquilo foi uma brincadeira, uma piada que ele [Benjamin] tenta transformar em drama".

Como fica, então, a história do "menino do MEP"? Um leitor (José Cláuver, de Macaé, RJ) entende assim: Lula deve ter feito "um relato em tom de chacota, vangloriando-se de sua "macheza", querendo dizer que "traçaria" quem lhe desse oportunidade, num momento de carência sexual. "Macho que é macho não nega fogo!'".

Concordo com José Cláuver e posso facilmente imaginar que Lula, em 1994, tenha inventado a história do "menino do MEP" só porque ela parecia cair bem na conversa, porque era um jeito fácil de cimentar uma cumplicidade entre "homens".

Claro, naquele almoço de 94, visto o passado de César Benjamin, a chacota não tinha como funcionar: o que, para Lula, devia ser uma piada logo esquecida só podia ficar como um horror inesquecível para Benjamin.

Resta acrescentar: saber criar, com poucas palavras, laços imediatos de cumplicidade e companheirismo é uma qualidade, um talento social e político. Infelizmente, quase sempre, a cumplicidade mais fácil é encontrada em nossos denominadores comuns mais estúpidos: a piada que faz rir a todos é a mais boçal.

Era 1975. Eu estava em Milão para Finados, dia em que acompanhava meus pais na visita às tumbas de familiares e amigos.

No dia 3 ou 4 (feriado na Itália), fui para uma reunião ordinária da célula do Partido Comunista de meu bairro. Clima perfeito para os anos de chumbo: a cada vez que entrava um companheiro, a neblina da rua, insinuando-se na sala, confundia-se com a fumaça dos cigarros. Cheguei tarde e sentei perto da porta. Alguém começou a reunião informando: "Companheiros, morreu P... P...P...P...". Falou como se estivesse gaguejando na letra P.
Outro (provavelmente numa piada ensaiada) repetiu, perguntando "P, P, P, P?". "É", explicou o primeiro, contando nos dedos, "Pier, Paolo, Pasolini, Pederasta". Todos riram.

Recuei até a porta e saí para a rua. Atrás de mim saiu Mario Spinella. A princípio, numa reunião como aquela, Mario teria tomado a palavra e empurrado aquela risada de volta para a garganta de todos -ele tinha paciência e cacife para isso. Mas, naquela noite, o cansaço o venceu. Caminhamos em silêncio, constrangidos e envergonhados, até à casa dele, que funcionava, de fato, como uma espécie de biblioteca aberta dia e noite.

Mais tarde, a casa encheu. Alguém decidiu ser engraçado e encenou a morte de Pasolini na praia de Ostia em dialeto friulano.

Quando fui embora, Mario me acompanhou até a porta e me disse: "Pois é, a boçalidade não é uma prerrogativa de classe".

Cheguei à casa dos meus pais pela meia-noite. Meu pai estava lendo, numa poltrona da sala. Peguei, na estante de poesia, "As Cinzas de Gramsci" (que ainda é o Pasolini que prefiro) e sentei ao lado dele.

Ele disse: "Que bom que você voltou". E ficamos lendo, cada um seu livro, madrugada adentro. Foi a última vez que frequentei a célula de um partido político.

ccalligari@uol.com.br

2 comentários:

  1. Só não entendi uma coisa: se comunista faz piada com a morte trágica de Pasolini, é boçal, mas se intelectual encena a morte em dialeto friulano, é "engraçado"?

    ResponderExcluir
  2. Caro amigo Contardo

    Neste episódio pude ver a boçalidade da Folha de S.Paulo, que resolveu enterrar de vez seu manual de jornalismo, e a boçalidade de um pseudo ativista da velha e jurássica esquerda manifestar-se gravemente.

    A veiculação deste artigo de Cesar Benjamim pela Folha foi um dos episódios mais degradantes da imprensa brasileira nestes tempos de internet. Como leitor da Folha e dos seus excelentes artigos me senti ultrajado.

    Devo economizar um bom dinheiro, de agora em diante, deixando de comprar este jornal. Que o Otavio Frias Filho conduza sua agenda de baixarias sem o meu dinheiro.

    O debate no Brasil está ficando cada dia mais pobre, lamentavelmente.

    Abs

    ResponderExcluir