19 agosto 2010

O domínio do trivial




Hoje, cada vez mais, mesmo quando parecemos discordar, pensamos todos as mesmas trivialidades

AOS VINTE anos, leitor de Gramsci, eu entendia que o poder das classes dominantes se exercia de duas maneiras.

Havia a exploração econômica, com repressão eventualmente brutal das reivindicações dos trabalhadores (sem contar as guerras imperialistas).
 E havia a outra face do domínio: o controle das idéias e das mentes, oculto e insidioso. Esse era o terreno de luta dos intelectuais: podíamos colaborar com a classe dominante ou, então, fazer o quê? Sermos porta-vozes de uma nova classe?

Não éramos totalmente ingênuos. Reconhecíamos os horrores do dito "socialismo real" e percebíamos que ele substituíra uma classe dominante por outra. A ditadura do proletariado não tinha por que ser melhor do que a ditadura da burguesia; talvez, aliás, ela fosse pior. Nosso sonho era outro: uma sociedade sem classes.
Pois bem, um espectador apressado poderia pensar que, enfim, realizamos a famosa sociedade sem classes -ao menos em parte.

Claro, desigualdades e exploração continuam; no entanto, é difícil distinguir a cultura da classe dominante das outras que lhe seriam opostas, porque, no fundo, mesmo quando parecemos discordar, pensamos todos igual.

Acabo de ler "L'Egemonia Sottoculturale", de Massimiliano Panarari (Einaudi, 2010). O autor, um intelectual de minha geração, faz uma crítica hilária da "subcultura da fofoca", que seria, segundo ele, a cultura dominante na Itália de hoje. Infelizmente, é difícil entender os exemplos no texto de Panarari sem ter sido espectador da televisão aberta italiana durante um bom tempo (e para isso é necessário dar prova de um certo heroismo). Mas o que Panarari diz não se aplica só ao caso da Itália.

Mundo afora, é cada vez mais difícil dizer algo que não faça parte de um senso comum que é feito de referências, ideias e, sobretudo, maneiras de pensar compartilhadas graças ao uso generalizado da mesma mídia.

Nesse quadro, pensar criticamente é árduo. Quem deseja convencer seus leitores ou espectadores de que ele pensa fora da trivialidade dominante tende a parecer-se com aquelas crianças que, de vez em quando, gritam "xixi e cocô" e, com isso, gabam-se de ter quebrado um grande tabú.

Nesse sentido, nos EUA, são cada vez mais populares radialistas, apresentadores e jornalistas supostamente "conservadores", que devem seu sucesso a uma vulgaridade e a uma truculência que parecem satisfazer a espera de todos por um pensamento novo, diferente. Um exemplo: um dos aspectos do senso comum é um respeito forçado das regras do politicamente correto. Diante disso, os ditos comentadores não inventam visões mais complexas e produtivas da diversidade social, mas, para criar a ilusão de que eles pensariam fora do senso comum, permitem-se, de vez em quando, dizer ou gritar "negro" ou "viado". Sua "ousadia" é tão inovadora quanto a das crianças do "xixi e cocô".

No Brasil, o debate eleitoral em curso poderia também servir para mostrar que nosso senso comum compartilhado é, no caso, uma espécie de razoabilidade, resignada a evitar temas excessivamente conflitivos (o aborto, por exemplo) e a aceitar alianças duvidosas e supostamente "necessárias".

Como chegamos a essa perda de contraste na vida pública e cultural?

Segundo Panarari, a burguesia ganhou a luta pela egemonia jogando a carta do prazer: "Na década do hedonismo reaganiano, todos se convenceram, de repente, que estava na hora de divertir-se. Palavra de ordem: "Queremos folgar" e, por favor, evite-se empestar a existência, de qualquer maneira que seja, com política, cultura, economia e todas essas "coisas" assimiláveis a preocupações e aborrecimentos". Conclusão: a subcultura hedonista da fofoca é o novo ópio do povo.

Concordo (um pouco) com essa visão apocalíptica da cultura dominante. Mas discordo da ideia de que a subcultura da fofoca seja a invenção vitoriosa de uma classe específica.

Ela é, ao meu ver, uma consequência dos nossos tempos, pela razão que segue. Quando a midia é de massa, não há mais diferença entre manipuladores e manipulados, pois os próprios manipuladores, expostos à mídia, são manipulados por suas produções. Ou seja, progressivamente, todo o mundo pensa as mesmas trivialidades.

É o feitiço que enfeitiça o feiticeiro.

2 comentários:

  1. Oi Contardo,

    aproveitando a minha passagem aqui, vou postar mais um comentário: esta semana eu fiz uma palestra sobre fofoca, utilizando-me a teoria das pulsões (Freud e Reich). Eu sou psicólogo de uma cidade de 4.800 habitantes, interior do RS. Além deste pequeno prazer (satisfação) que é a fofoca, penso que ela, no interior, busca cumprir algumas funções: 1) vigiar; 2)retomar as regras da moralidade. Creio que a mudança cultural contemporânea chega de uma maneira estranha para o mundo do campo, pois muita informação de massa, tendências culturais, não são tão manipuladas neste meio. parece-me que elas vem pelos adolescentes, mas esbarra num filtro imponente que é a tradição. A primeira função, vigiar, não sei se é disfuncional para esta cultura (e que já foi funcional em outro momento) ou se é fruto das frustrações de uma sexualidade muito interiorizada na família. a segunda, moralidade, talvez seria decorrência disto, mas vem reforçar a imponência da tradição sobre os jovens.
    creio que a análise da fofoca é válido pensar a que FUNÇÃO ela serve, em relação aos centros urbanos. Divertir-se, talvez. "Egoificar-se" (é a primeira vez que uso este termo), ou seja, fincar o ego narcísico na cultura de massa, livre. Concordo com você sobre a trivialidade, pois o que acontece nestes programas, acontece em reuniões de amigos: egos sobressaltados, especialistas, livres, descompromissados, onde todos compartilham das mesmas idéias e formas de pensar.

    abraço

    Henrique
    weber.henrique@gmail.com

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  2. Por algum motivo lembrei-me da dupla sertaveja: Diogo-Reinaldo.

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