09 setembro 2010

Leia com atenção - ou não




Novas pesquisas valorizam a divagação e o devaneio, ambos hoje considerados indispensáveis para pensar

A SEXTA temporada de "House" está acabando, no Universal Channel, e a sétima é iminente. Quem segue a série sabe que, frequentemente, o achado decisivo do médico House acontece, digamos, por distração.
Durante uma boa metade de cada episódio, House testa todo tipo de hipótese diagnóstica, enquanto o paciente sobrevive a exames e tratamentos inúteis.

Mesmo durante essa primeira fase, House não avança graças a sei lá qual capacidade focada de examinar e interpretar os sintomas do paciente. Ao contrário, ele funciona direito só numa espécie de jogo em que os membros de sua equipe, meio que no chute, levantam hipóteses que ele derruba.

Essa componente lúdica e divagadora de seu funcionamento aparece em outras circunstâncias: o paciente está morrendo e House (para pensar melhor ou para não pensar?) toca guitarra elétrica, ironiza a vida sentimental de um amigo, brinca com uma bola.

Reconhecemos facilmente a hora do diagnóstico final e correto porque 1) faltam 15 minutos ao fim do episódio, 2) repetidamente, esse diagnóstico surge quando House se perde num pensamento que não tem nada a ver com o paciente e sua doença.

Imagine, por exemplo, que o paciente esteja morrendo ou prestes a ser operado por causa de um diagnóstico errado. House entra num bar para assistir a um jogo de futebol. Vergonha: ele deveria estar preocupado com seu paciente, não é? Mas eis que um zagueiro faz um gol contra, e a distração desse momento-futebol permite que House se lembre de que, às vezes, o organismo também faz gol contra: heureca, doença autoimune!

Para os psicanalistas, essa situação é familiar. Freud recomendava que os pacientes fossem escutados com "atenção flutuante". Ele não sugeria que, durante a sessão, os analistas lessem o jornal ou cuidassem de seus e-mails.

Mas acontece que interpretar significa juntar dois pensamentos que, à primeira vista, não parecem ter muito a ver um com o outro. Para que isso aconteça, é preciso manter aberta a porta da divagação, de modo que pensamentos estrangeiros ao contexto não sejam barrados por princípio.

O diagnóstico médico e a escuta psicanalítica são processos que exigem um exercício criativo, se não inventivo. Neles, pode ser bem-vindo, AO MESMO TEMPO, divagar (ou mesmo devanear) e seguir os caminhos focados do pensamento que executa uma tarefa.

Nos anos 60, o metilfenidato (um estimulante) começou a ser usado para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em crianças em idade escolar. De 60 a 90, o diagnóstico de TDAH aumentou brutalmente: nos EUA, por exemplo, de 12 crianças em cada mil nos anos 70, chegou-se a 34 em cada mil nos anos 90.

Seja qual for a realidade neurológica e psicológica do TDAH e seja qual for a eficácia do seu tratamento com metilfenidato, é difícil não constatar que a epidemia tem também uma explicação cultural.

Sua história começa logo nos anos 60, uma época em que divagar (perder-se no pensamento e pelo mundo) era um valor positivo da contracultura. Desde então, voltamos a prezar o olhar focado do predador. O ápice dessa reação (e do diagnóstico de TDAH) foi a religião do sucesso dos anos 90.

Ora, começam a aparecer pesquisas que revalorizam a divagação e o devaneio. "Descobrimos" o que já sabíamos: há uma desatenção sem a qual não se consegue pensar nada que valha a pena.

Usando apenas o dito "controle executivo" focado, conseguiremos cumprir tarefas adequadamente (mesmo assim, à condição que não haja imprevistos), mas não inventaremos nada. A própria invenção científica (não só a criação artística) pede um uso simultâneo de controle executivo e divagação.

Duas pesquisas, para quem quiser ler (com atenção, claro): www.migre.me/1aZZu e www.migre.me/1b57h.

A segunda documenta (por ressonância magnética funcional) a cooperação possível de pensamento focado e devaneio (que ainda são, por muitos, considerados como atividades exclusivas uma da outra).

À luz dessas pesquisas, seria bom reavaliar nossa hipervalorização da atenção focada e, sobretudo, nossa medicalização sistemática de crianças que, às vezes, com toda razão, gostam de sonhar de olhos abertos.

8 comentários:

  1. o problema no TDA,imagino,é a angústia de "sonhar", o tempo todo, "com olhos abertos"... o nível de angústia deve determinar,penso, a necessidade do remédio...

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  2. Oi Contardo,
    Visite meus blogs; devaneios poéticos, muitos inspirados em tuas pontuaҫões, desde o tempo em que dirigias a APPOA. Na época eu cursava psicologia e continuo tua seguidora.
    rejanetellini.blogspot.com
    E,
    retellini.blogspot.com

    Tenho até um chimarrão dionisíaco, no blog de poesias, pra te receber.
    Abraҫo,
    Rejane Tellini

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  3. Sou um DDA (atualmente TDAH) típico e abandonei a Ritalina por isso mesmo: ganha-se atenção e foco e perde-se a criatividade, espírito inventivoe o poder de extrapolar o senso comum.

    Ser "pouco produtivo" no âmbito corporativo virou doença num mundo de medíocres.

    DDA's como Einstein ou Raul Seixas graças a Deus (apesar de ser ateu. rs) nunca tomaram Ritalina.

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  4. Muito bom... fiquei pensando e gostei de encontrar apoio para meus devaneios.. Que alias, são fonte de meu gosto pela escrita... e compreensão do incompreensível. Ligar afetos às idéias...
    Vou pensar um pouco mais sobre esse texto, adorei os exemplos.
    Adoro tudo que me coloca a devanear...

    “Além disso, odeio tudo aquilo que somente me instrui sem aumentar ou estimular a minha atividade.” Rsrs

    Abraços de uma Futura Psicanalista!

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  5. crio os meus espetáculos - que sei que você gosta - exatamente como você descreveu. Que bom...

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  6. Contardo,
    Minha tese de doutorado é sobre o assunto (reflexão e ruminação). O problema foi que, justamente por acreditar na força do devaneio, fico viajando por aí nos blogs e toda a sorte de coisas nada-a-ver-com-a-tese, agora estou no fim do prazo do doutorado e cadê a tese? hun? uh? hehehe
    Esse é só um alerta para aqueles que não estão muito afim de transpirar trabalhando e vão achar no seu texto uma bela sustentação profissional para não fazer nada... desatenção é bom, mas durante quatro anos de doutorado... ehm... acho que meu problema é outro... ;-)

    Um abraço!

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  7. Oh e agora que eu vi, eu estudei com um orientando do Jonathan Schooler (autor dos dois artigos que você mencionou), que mundo pequeno! rs
    Ele estava no congresso Towards a Science of Consciousness em Tucson este ano também, falando sobre o assunto...
    Anyways, eu gosto ainda mais deste artigo (não é dele) sobre o assunto: http://www.apa.org/pubs/journals/features/emo-52226.pdf

    ;-)

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  8. Há crianças demais sendo "tratadas" por aí. Pelo que percebo, são as mais ricas interiormente, as que não aceitam imposições e cerceamento de sua liberdade de pensar. Os adultos adoram parar as crianças, para que prestem atenção aos seus dogmas e para que sejam obedientes e educadas. Esse assunto e esse fato me incomodam sobremaneira. Temos que fazer uma campanha de esclarecimento para que pais e professores e, por que não dizer, para que médicos compreendam que estão cometendo um crime. Aceito a medicalização, somente baseada em longa análise multidisciplinar que faça um diagnóstico seguro de que a criança sofre de uma patologia. Gostei e aprendi muito como o post. Obrigada

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