28 outubro 2010

Cordialidades




Será que pode funcionar uma sociedade em que as razões íntimas do coração dominam a vida pública?



NUMA MANHÃ da semana passada, cancelei meus compromissos e fiquei em casa, esperando a visita do representante de uma companhia de telefonia móvel.

Quinze minutos depois da hora marcada, como ele não aparecia, quis confirmar sua vinda. O celular do representante deu caixa postal; deixei um recado e esperei. Nada aconteceu, e contatei a central de atendimento ao cliente, que tinha agendado a visita. Aprendi assim que o representante não compareceria porque, logo naquela manhã, a mãe dele morrera.

Lembrei-me do jovem Antoine Doinel, o herói de "Os Incompreendidos", de Truffaut, que mata aula e, na hora de justificar sua ausência, inventa que a mãe morreu. Quantas vezes, pensei, ao longo de minha escolaridade, minha avó morreu, renasceu e morreu de novo?

O humor era descabido, visto que o luto do representante tinha toda chance de ser real. Poucos dias depois, aliás, quando o encontrei, ofereci-lhe meus pêsames sinceros. Então, qual era a graça? De onde vinha a inspiração para zombar?

Pois é, eu estava um pouco irritado (e sarcástico) por não ter sido avisado de que o compromisso seria desmarcado. E não era só isso. Havia também algo exótico, para mim, no caráter íntimo, excessivamente emocional da justificação.

Na França, numa situação equivalente, eu seria informado, no máximo, de que o compromisso teria que ser remarcado por causa de um "luto de família". Sem mais.

Nos EUA (ainda mais em Nova York), nada seria dito do motivo pelo qual, "infelizmente", o compromisso não poderia ser honrado.

Em suma, a desculpa dada parecia ser um ótimo exemplo do grande peso que as razões íntimas do coração têm na nossa vida pública -ou seja, um exemplo de "cordialidade" brasileira, no sentido que Sérgio Buarque de Holanda inventa para essa palavra em "Raízes do Brasil" (Companhia das Letras, 1997; a editora está republicando a obra de Sérgio Buarque de Holanda e acaba de sair "Visão do Paraíso", que é meu Sérgio Buarque preferido).

Mas voltemos à cordialidade nacional. Deixemos de lado as consequências políticas, que são obviamente perniciosas (quando o privado invade o público, a vida política só pode ser contaminada por corrupção, nepotismo, procura por vantagens familiares e privilégios pessoais -acima do dever cívico). E consideremos apenas o dilema do compromisso e do luto repentino.

Na hora de desmarcar, é preferível explicitar as razões comovedoras, pedindo a participação afetiva do cliente (a minha, no caso) e assim, talvez, conquistando sua simpatia? Ou, então, discretamente, impedir que os afetos privados entrem no espaço público do comércio e do trabalho?

No primeiro caso, teremos um mundo, certamente, mais humano. No segundo, um mundo mais funcional, em que os afetos privados não atrapalhariam as engrenagens da vida pública.

Mas, fiquei me perguntando, será que um mundo menos cordial é necessariamente mais funcional? O mesmo dia me trouxe uma resposta, que cada um poderá avaliar.

Enquanto tomava meu café, uma hora antes do dito compromisso com o representante, alguém ligou para a minha casa. Cícera, minha governanta, atendeu e logo interrompeu a ligação por se tratar de um engano (isso eu ouvi ela dizer).

No fim da manhã, depois de ter presenciado as várias ligações (para o representante e para a companhia de telefonia) nas quais eu me queixava de não ter sido avisado, eis que Cícera me revelou que o telefonema que ela atendera no começo da manhã talvez tivesse sido uma tentativa de me avisar e desmarcar o compromisso. Perguntei: Como assim?

Pois bem, realmente, alguém dissera que o representante não poderia comparecer no horário previsto porque a mãe dele tinha morrido.

Mas, então, perguntei para Cícera, o que aconteceu? Será que, na hora, você não entendeu bem o recado? Não, respondeu Cícera, eu entendi, mas a pessoa que ligou falou de morte, e morte aqui eu não vou deixar entrar: "Morte aqui, só pode ser engano".

Sem dúvida, a cordialidade, nesse caso, atrapalhou. Mas como é que eu me queixaria? Vai que Cícera tenha razão. Afinal, talvez a morte, como o vampiro, para poder entrar, precise ser evocada ou convidada, de uma maneira ou de outra. Não é?

A todos, feliz dia das bruxas.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2810201027.htm

21 outubro 2010

Pensamentos concretos sobre o aborto



Em matéria de aborto, não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo

1) Às vezes, para descobrir o que pensamos, é útil pôr de lado nossos princípios. Pois, em matéria de costumes, os preceitos gerais servem sobretudo para evitar dilemas concretos nos quais nosso pensamento iria revelar-se muito mais complexo do que os princípios que bradamos.

2) Numa situação em que o aborto seja necessário para salvar a mãe, mesmo nos meses finais da gravidez, quase todos dirão que a vida da mãe deve ser preservada (aqui, a lei brasileira, como é normal que aconteça, sanciona o sentimento da maioria).

Agora, imagine que, cinco minutos depois do corte do cordão umbilical, apareça uma condição médica na qual a mãe morrerá sem falta se não receber o transplante de um órgão que só o recém-nascido pode lhe oferecer -sendo que o bebê perderá a vida ao ser privado desse órgão. Para qualquer um de nós, esse transplante mortífero seria uma abominação.

Imagine ainda que, no meio de um parto difícil, a mulher esteja inconsciente e o médico pergunte ao pai: "Devo salvar a mãe ou a criança?". O pai que decidisse salvar a criança (e sacrificar a mãe) seria, aos nossos olhos, acredito, um simples uxoricida.

Parece, em suma, que o direito do feto à vida está subordinado ao da mãe e é inferior ao da criança que já nasceu.

Mas consideremos o caso de alguém que matou uma mulher grávida e, abrindo seu corpo, esfaqueou o feto. No meu foro íntimo, ele é culpado de dois assassinatos.

Da mesma forma, o canalha que, voltando bêbado para casa, produziu o aborto de sua mulher a pontapés e agulha de tricotar enfiada à força no útero, no meu foro íntimo, é um assassino de fato e de direito, não "só" um espancador de mulher.
De repente, a vida do feto parece adquirir uma dignidade comparável à dos adultos.

3) Aceitamos que o aborto seja praticado para preservar a vida da mãe. Mas é curioso que "vida", nesse caso, signifique apenas simples sobrevivência. Viver é muito mais do que prolongar a existência, e o bem-estar não é só o bom funcionamento dos órgãos. Quer comprovar? Tente "consolar" um enlutado com a falsa sabedoria de que "saúde é o que interessa, o resto não tem pressa". Corrijo-me: não tente.

Se a vida não é só sobrevivência abstrata, o que pode significar aceitar o aborto para preservar a vida concreta da mãe?

4) A oposição não é entre os que privilegiam a vida do feto e os que privilegiam a escolha livre da mulher, mas entre abstrato e concreto.

Vamos privilegiar a vida do feto? Ótimo, mas que seja a vida concreta. Para exigir de uma jovem que ela leve a termo uma gravidez involuntária, é preciso oferecer-lhe a garantia de que ela poderá abandonar a criança com dignidade e de que a criança abandonada não ficará para sempre num orfanato. Ou seja, é preciso proteger a vida concreta do nascituro.

Vamos privilegiar a escolha? Nos anos 1970, na Suíça, havia imigrantes italianos que eram autorizados a trabalhar por períodos de 11 meses. Ao fim de cada período, eles tinham que voltar para seu país e lá ficar durante um mês. Era um artifício para que eles não se tornassem residentes e não pudessem levar consigo mulheres e filhos.

Um pouco para compensar a longa frustração, um pouco para que as mulheres, lá na Itália, tivessem de que se ocupar durante a longa ausência do marido, a regra era engravidar a esposa a cada volta para casa. Uma dessas esposas, num vilarejo da Campanha, tinha 30 anos e 11 filhos. Ela tentou abortar o 12º do jeito que dava. Perdeu a vida. Nessa história, onde está a escolha livre?

5) Uma menina de 13 anos transa pela primeira vez com um menino de 17. Ela ouviu dizer que é prudente usar camisinha. Ele explica que a camisinha foi proibida pelo papa. Passei um mês cruzando os dedos e funcionou: a menina não engravidou. É possível criminalizar o aborto e, ao mesmo tempo, desaprovar a contracepção?

6) No corredor de um pronto-socorro lotado, um médico (?) diz a uma enfermeira: "Não se preocupe. Ela abortou, deixe sangrar". Há os que querem criminalizar o aborto para punir a mulher: "Transou? Agora encare as consequências".

Alguém, a esta altura, perguntará: "Afinal, você é contra ou a favor da descriminalização do aborto?". Não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2110201023.htm

14 outubro 2010

A favor ou contra?



É o pior momento para argumentar, porque, numa eleição, as pessoas precisam ser a favor ou ser contra

NO QUE prometia ser um belo dia de primavera de meados dos anos 1970 em Paris, um jovem psicanalista trabalhava no plantão de uma enfermaria psiquiátrica.

Considerando a exiguidade do salário que ele recebia, seria mais correto dizer que ele estagiava. De qualquer forma, ele não estava ali pelo dinheiro, mas para enriquecer sua experiência dos caminhos pelos quais a gente enlouquece e sofre.

O jovem psicanalista estava sempre disposto a topar uma parada que pudesse lhe ensinar algo novo. Naquele dia, embora esta não fosse sua atribuição, ele, com um psiquiatra e dois enfermeiros, embarcou na ambulância que respondia a um chamado da polícia do bairro 13. O comissariado recebera o telefonema angustiadíssimo de um homem que acabava de encontrar sua mulher e sua filha de um jeito que não conseguia descrever, mas que, ele gritava, não era normal.

A ambulância chegou antes dos policiais. O marido, desculpando-se por não ter a coragem de voltar lá dentro, apontou na direção da porta do banheiro do apartamento.

O jovem psicanalista foi o primeiro a entrar e descobriu uma jovem mulher, deitada nua na banheira, cantando feliz enquanto brincava com seu bebê na água. A jovem mulher não pareceu perceber a chegada do estranho e o jovem psicanalista se deu conta de que o bebê era curiosamente inerte, rígido e branco: ele estava morto há tempo.

O jovem psicanalista nunca esqueceria o corpinho que ele apertou contra si, como se houvesse uma chance de esquentá-lo de volta para a vida.
Engravidar e dar à luz (apesar de ser o cotidiano da espécie) são experiências tão extremas que elas podem enlouquecer algumas mulheres, em geral temporariamente, logo após o parto.

A internação da mulher de nossa história durou pouco: ela foi declarada não imputável por razão de insanidade e recuperou a dita sanidade rapidamente.

Durante sua internação, soube-se que, dois anos antes, um irmão do bebê morto na banheira também tinha falecido, aos três meses, de morte súbita e inexplicada. A equipe do hospital se perguntou: não seria legítimo esterilizar compulsoriamente as mulheres que matassem seus bebês numa psicose desencadeada pelo parto? De fato, existe um risco estatístico de recidiva caso elas deem à luz outra vez.

A discussão não chegou a conclusão alguma; ficou suspensa entre o respeito pela esperança de uma mãe que quer tentar uma nova gravidez, a dificuldade de garantir o direito à vida dos nascituros e nossa incapacidade de prever, prevenir e intervir a tempo. Pouco importa, pois nisto eu acredito mesmo: todas as discussões que valem a pena são inconclusas.

Bastante tempo depois, o jovem psicanalista, que não trabalhava mais naquele hospital, recebeu um telefonema do psiquiatra que estivera com ele na ambulância. A jovem mulher da banheira pedira uma consulta na mesma enfermaria onde ela fora internada dois anos antes: ela estava grávida e queria saber se corria o risco de enlouquecer de novo e assassinar seu bebê no berço. Que ela perguntasse era um bom sinal, mas insuficiente para responder com segurança. O que fazer? Encorajá-la a abortar ou a apostar que nada aconteceria? Quem sabe sugerir que levasse a gravidez a termo e se engajasse a entregar o bebê, na hora do parto, para a assistência pública?

Não sei a resposta certa e é por isso que me lembrei dessa história.

Uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja. Numa eleição, as pessoas precisam ser a favor ou contra.

Ora, as pretensas discussões entre "a favor" e "contra" me inspiram o mesmo mal-estar que sinto quando assisto a uma cena de violência. Faz sentido porque, nessas discussões, ninguém argumenta, cada um apenas reafirma abstratamente sua identificação: em "eu sou a favor" e "eu sou contra", o que mais importa é reforçar o "eu". Com isso, inevitavelmente essas discussões menosprezam, atropelam e violentam a vida concreta de todos.

Depois desse preâmbulo, talvez eu consiga, numa coluna futura, escrever sobre a questão do aborto. Enquanto isso, eis uma leitura que recomendo a todos os que preferem pensar a gritar: "O Drama do Aborto: Em Busca de um Consenso", de dois médicos, A. Faúndes e J. Barzelatto (Komedi). Sobre o tema, talvez esse seja o escrito mais honesto, menos tendencioso e mais generoso que já li.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1410201024.htm

07 outubro 2010

"Eu Matei Minha Mãe"



Nos filhos, a vontade de ser autônomo, livre e rebelde convive com a de ser cuidado, amparado


AOS 17 anos, Xavier Dolan, canadense, escreveu o roteiro de "Eu Matei Minha Mãe". Logo, ele produziu, dirigiu e protagonizou o filme.

Apesar do sucesso em Cannes em 2009 (três prêmios na Quinzena de Realizadores) e na Mostra de Internacional de Cinema de São Paulo, "Eu Matei Minha Mãe" acaba de estrear em poucas salas e capitais.

Adolescentes e pais, apressem-se e não percam sob nenhum pretexto. Os pais mais corajosos deveriam assistir ao filme com os filhos, a experiência valerá algumas sessões de terapia de família e talvez resolverá conflitos cruentos e incompreensíveis numa saudável hilaridade coletiva.

O filme é prodigioso: não me lembro de ter lido ou visto um relato tão terno e, ao mesmo tempo, cruel (ou seja, tão autêntico) da mistura explosiva de amor-paixão e ódio letal entre um filho e sua mãe.

1) Hubert, o protagonista, filho de pais separados, vive com a mãe, enquanto o pai é pior que ausente: ele só aparece na hora de "disciplinar" o garoto. Mas que ninguém se sirva disso como pretexto para tirar o corpo fora: se Hubert vivesse com o pai, sua relação com o genitor seria tão ambivalente quanto o é com a mãe. Mesma coisa se os pais de Hubert não estivessem separados: a funcionalidade de uma família controla e esconde, mas não suprime a virulência dos afetos em jogo.

2) Alguns pais e adolescentes se reconhecerão no filme. Ótimo: eles se sentirão menos sozinhos. Com frequência, encontro uma espécie de vergonha da violência das emoções familiares e da incompreensão entre pais e filhos; muitos fazem de conta, encenam uma família leve e jocosa como uma propaganda de margarina e sofrem em silêncio, convencidos de que seu caso é extremo, patológico, se não único. Pois bem, não é só que as famílias margarina sejam chatas (isso, Tolstói já dizia), é que elas não existem.

3) Os pais e adolescentes que se reconhecerão na história de Hubert não precisam se desesperar. Lembrem-se: o filme é, em grande parte, autobiográfico, ou seja, aquela relação horrorosa entre mãe e filho não impediu que vingasse um jovem como Dolan, que tem sensibilidade e inteligência emocional para vender. Quanto à mãe de Dolan, aposto que, agora, com o filho ocupado em fazer filmes, ela deve estar namorando feliz e comprando casaquinhos, liquidações afora.

4) Alguns dirão: "Nossa família não tem nada a ver com isso, a gente se ama e se respeita, tranquilamente". Outros acrescentarão: "Nunca fui tão desrespeitoso com meus pais, nem em pensamento". Acredito. Mas repare que, em geral, as paixões parricidas da pré-adolescência e da adolescência são esquecidas na idade adulta. O filme de Dolan foi possível, justamente, porque foi escrito e filmado com Dolan ainda adolescente, antes da amnésia adulta.

5) A grande maioria dos adolescentes sente asco do corpo dos pais, acha nojento os pais comendo, bebendo, dormindo, beijando-se, respirando etc. Esse desgosto é bem-vindo: serve para encorajar o adolescente a procurar alhures seus objetos de desejo.

6) Nos pais, a vontade de criar filhos quase sempre convive com a vontade de continuar "aproveitando a vida" (como se criar filhos não fosse um jeito extraordinário de aproveitar a vida). Há pais que deveriam ouvir o que eles mesmos dizem quando um filho lhes pede um cachorro: "Você quer um bichinho que abane o rabo quando você entra em casa, mas você vai ter que levá-lo para fazer xixi, educá-lo, dar-lhe comida a cada dia". Uma menina, que acaba de ganhar um filhote muito desejado, pergunta-me: "Por que ele foge se estiver sem coleira? O que é, ele não gosta de mim?".

7) No filho, a vontade de ser autônomo, livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado.

8) Também no filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada -kitsch como um abajur de oncinha comparado a uma pintura de Jackson Pollock.

9) Talvez Hubert não fosse feito para ser filho; quase ninguém é.

10) Talvez a mãe de Hubert não fosse feita para ser mãe; quase ninguém é. Ela pode se perguntar, aliás, se não teria sido melhor não ter aquele filho. Na saída do cinema, por um instante, podemos pensar que sim, certamente, para a vida dela, teria sido melhor.

Mas será que teria sido mesmo?

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0710201024.htm