13 janeiro 2011

A autoridade que espero




Para o paternalismo, as autoridades podem mandar na gente porque nos amam como um pai ou uma mãe



"O QUE ESPERAMOS", em português, é uma expressão complexa: pode significar o que gostaríamos que acontecesse (é o sentido do francês "espérer" e do inglês "to hope") ou apenas o que antecipamos (é o sentido do francês "s'attendre à" e do inglês "to expect").
Na semana retrasada, uma reportagem da revista "Veja" me perguntou o que eu esperava dos primeiros cem dias do governo Dilma. Respondi: "Espero ser tratado como gente grande. (...) Espero que a presidente não ache que é meu pai nem a minha mãe".

Minha resposta respeitou o duplo sentido de esperar: escolhi algo que desejo e também antevejo que possa acontecer no governo Dilma.


Na presidência Lula (que foi, ao meu ver, uma grande Presidência para o país), a única coisa que realmente me ouriçou foi o paternalismo. Disso não vou sentir falta. E ninguém deveria -pois, no balanço positivo dos oito anos, acredito que quase todas as manchas tenham sua origem no paternalismo.


O paternalismo explica a escolha de colaboradores mais por vínculos afetivos do que por competência ou probidade e explica, em geral, a dificuldade em reconhecer que a lei se situa acima dos laços de amizade e de família (veja-se o caso final dos passaportes diplomáticos concedidos aos filhos de Lula).

Por que o paternalismo me incomoda tanto?

Tive pai e mãe ótimos e, ainda hoje, às vezes, gostaria que estivessem aqui para me orientar. Mas não deixo ninguém se colocar no lugar deles. Isso não me exige um esforço grande, pois o lugar da minha mente que eles ocupavam antes que eu alcançasse minha (relativa) autonomia já não existe mais, há tempos.


Desfazer-me desse lugar não foi automático; em grande parte, foi o resultado do processo de minha análise. Uma psicanálise, aliás, poderia se definir como o esforço para se desfazer de figuras paternas internalizadas, que tiveram uma função no atrapalhado caminho pelo qual nos tornamos adultos, mas das quais não precisamos mais.


O paternalismo é o avesso desse esforço: ele quer que a experiência adulta da autoridade seja moldada pela nossa neurose familiar básica.


O paternalismo acha bom que, para nós, toda figura de autoridade se pareça com uma mamãe ou um papai, cuidadosos e/ou severos. Também o paternalismo acha bom que, do agente de trânsito ao presidente, do professor à enfermeira, as figuras de autoridade pensem que elas podem mandar na gente porque nos amam como os pais amam seus filhos.


A neurose faz com que, na vida adulta, nós tendamos a viver todas as relações como extensões dos afetos familiares no meio dos quais crescemos. No caso que nos interessa, estaríamos prontos a sermos bons meninos diante de um governante que nos convença de que ele é nosso pai ou nossa mãe (o que não vai ser difícil, pois isso é exatamente o que queremos acreditar).


Minha esperança é que, com Dilma, o governo não se prevaleça dessa neurose quase universal. Espero, por exemplo, que a presidente me peça para pagar mais impostos porque a boa administração do país exige esse esforço -não porque ela é uma mãe para mim, e, portanto, eu me comportarei bem.


Por que espero isso? Simples: a autoridade que se funda num vínculo afetivo é descontrolada e incontrolável. Quem ousaria discutir e limitar a suposta intenção amorosa dos "pais"? Como o "filho" ousaria inquirir o pai e a mãe? O paternalismo é quase sempre tentado pelo autoritarismo mais arbitrário. Por seu trajeto, espero que Dilma tenha pouca simpatia pelo autoritarismo sob todas suas formas.


Alguém, tendo lido minha resposta à "Veja", perguntou: mas não é normal que a relação com o pai e a mãe seja para nós o modelo de toda relação com a autoridade? Não é isso que a psicanálise nos diz?


Não é. A família é o sistema que inventamos para lidar com as crianças estranhamente prematuras que todos somos -crianças que precisam de cuidados e orientação durante um quinto de suas vidas. Pensar que a família, por ser o quadro em que descobrimos a autoridade, seja também seu modelo "natural" equivaleria a pensar que toda sexualidade, por ter começado com papai e mamãe, deva ser edípica, para sempre.


A psicanálise pensa (e espera) o contrário, ou seja, que a gente cresça e, no caso, que nossa (inevitável) relação com a autoridade deixe de ser parasitada pelos restos da neurose familiar.


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1301201125.htm

8 comentários:

  1. Nesse mundo de fases edípicas não resolvidas... e pais mal internalizados, sai Lula, um "pai" acolhedor, porém submisso e assume Dilma,uma "mãe" pra lá de fálica...

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  2. Apesar de não concordar com a visão do autor em relação às figuras políticas mencionadas, a relação traçada entre a política, ciência social, e psicanálise é digna de reflexão.

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  3. Pagar mais impostos?! Poderia ter ficado sem essa...
    Contardo, não se aventure nos campos da economia.

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  4. O paternalismo é extremamente difundido no país. É uma forma de controle eficiente.
    As nossas leis trabalhistas são assim. Nunca vi nada igual em nenhum país.

    Concordo com impostos sim. É a única forma de bancar esse estado paternalista que todos criticam mas mamam nas tetas.

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  5. Cada um tem o direito de emitir opiniões e eu de discordar: você está delirando dizendo que o governo Lula foi grande, só se foi um grande desastre, mais uma vez.Como intelectual você deixa muito a desejar. A psicanálise não consegue influenciar a sociedade, porque faltam pessoas de coragem paraserem mais explícitas e que não mais andem com tantas elucubrações.

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  6. Hoje terminei de ler o seu livro "Um conto de amor". Não sei porque fiquei com a impressão de que é "um quinto" autobibliográfico... Já li - Adolescência e Terra de Ninguém não sai da minha cabeceira. Agora estou te seguindo no Twitter... Isso pode ser um problema ou aos 50 anos é apenas resultado do prazer que uma boa leitura nos faz? (risos)

    Também apreciei o que você escreveu na veja sobre o "attendere", "alla speranza", "aspettiamo", "aspettarsi" (não entendi porque você não exemplificou com o sentido em italiano) - a tradução acima é do Dr.Google, não entendo nada de italiano. Eu "tuitei" a tua frase adaptada e inserí o "companheiro" e "querido"... Que pensar de uma "autoridade" que chama "seus governados" de querid@? Quando você vai escrever sobre isso?
    Se já escreveu, onde eu encontro?

    Abraços,

    Raciel
    ...

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  7. Eu concordo com a sua explanação de que o governo Lula tenha se espelhado em um modelo extremamente paternalista, até mesmo pela historinha sensasionalista de não faltar alimento na mesa de nenhum brasilero, e mais, todo governo autoritarist, como também o democrático, faz existir a parêa do "eu te dou se vocÊ ficar quietinho"...

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  8. Isso não é se aventurar pela economia e sim construir um raciocinio a partir do que ele sabe bem...

    Contardo, como sempre, uma leitura prazerosa, esclarecedora e inteligente. Você é inspirador.

    Essa neurose é, talvez, uma das melhores, se não a melhor, explicação para a apatia política do povo brasileiro.

    Gabriela Morais Abrão
    www.santaopcao.blogspot.com

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