Gosto de Dilma porque ela se mostrou disposta a sacrificar seu corpo natural para o bem do político |
1) RÉVEILLON
Ao longo da costa da Liguria, na Itália, entre Monterosso a Riomaggiore, sucedem-se cinco pequenas cidades (incluindo as duas que mencionei), ditas as Cinque Terre (cinco terras). É possível visitá-las todas, em seis horas, pelo "sendeiro azul", uma trilha que eu já achava grandiosa e emocionante quando, moleque, saía de Rapallo de trem para Riomaggiore e voltava a pé até Monterosso.
O caminho corre no encosto da montanha: de um lado a rocha, do outro, uma queda abrupta para um mar especialmente azul por ser imediatamente profundo.
O que me emocionava era a própria existência das aglomerações, num lugar tão improvável (migre.me/3oPbE).
Pois bem, passei a noite do Réveillon em São Conrado, Rio de Janeiro, enxergando, ao leste, os fogos que o Hotel Intercontinental ofereceu a seus hóspedes e, ao oeste, a favela da Rocinha.
Parece que, neste fim de 2010, os fogos da Rocinha foram mais alegres do que nunca. Graças à Presidência de Lula, talvez a população da Rocinha tenha acabado o ano com alguma sobra, que deu para investir na festa do Réveillon.
O fato é que, na comparação, os fogos da Rocinha ganhavam dos do Intercontinental, não pela quantidade ou pela variedade de formas e cores, mas pelo cenário que iluminavam. A cada rosa de luz que explodia no céu, eu via uma vinheta da persistência, da obstinação da vida humana, subindo e se segurando pelo morro.
Senti a mesma admiração comovida que sentia nas caminhadas de Riomaggiore a Monterosso.
Em suma, festejei a chegada do novo ano lembrando-me do seguinte: o que mais aprecio na nossa espécie é sua incrível resiliência -nossa capacidade de continuar existindo com e contra a natureza e com e contra os horrores que nós mesmos não nos cansamos de inventar.
Bem vindos a 2011. Incrível, gente: duramos até aqui!
2) Dilma Presidente
Uma leitora, Sofia Segalla, pergunta: "Uma mulher que luta pelo direito de ser protagonista de uma transformação histórica (...) o que essa mulher pode esperar perder? Do que ela está abrindo mão?". Sofia gostaria que eu "falasse a respeito das perdas das mulheres que assumem grandes posições políticas".
Aqui vai, e vou me servir de um clássico insubstituível, "Os Dois Corpos do Rei", de E. Kantorowicz (Companhia das Letras).
Qualquer indivíduo, ao se tornar governante, adquire um "corpo político" e sacrifica (deveria sacrificar), total ou parcialmente, seu "corpo natural". Ou seja, no caso do governante, o corpo oficial (o que desfila na praça e também o que, supostamente, à noite, está sempre debruçado sobre as necessidades da nação) torna-se mais relevante do que o próprio corpo natural, que ama, sofre e goza.
Em março/abril 1985, o corpo político de Tancredo se manteve vivo para salvar a democracia brasileira, enquanto seu corpo natural já estava morto ou quase. Ou, então, o corpo natural do presidente Roosevelt era confinado numa cadeira de rodas pela poliomielite; seu corpo político se ergueu sobre suas próprias pernas nas horas em que a história da nação o exigia.
Desde os anos 1960, paira no ar a ideia de que o governante que se importasse com o seu corpo natural seria mais humano e mais próximo da gente. Certo, mas será que, por isso, ele seria melhor governante? Duvido.
Em regra, no Brasil "cordial", as razões privadas invadem o espaço público; com isso, o corpo natural do político não sai de cena e continua gozando obscenamente de privilégios indevidos, do nepotismo, da corrupção e, naturalmente, da nossa cara.
E Dilma com isso? Pois bem, gosto de Dilma porque, até aqui, ela se mostrou disposta a sacrificar seu corpo natural para o bem do corpo político. Entendo o fato de ela ter desafiado a doença para continuar candidata como o gesto de quem considera que a função pública está acima de sua saúde e de sua vida.
Gosto também da reputação de "braba" de Dilma: no papo cordial dominante, quem leva sua tarefa a sério é considerado muito brabo.
Nota: infelizmente, não acredito que esse elogio a Dilma possa se estender a seus aliados, nem a todos seus ministros.
Respondendo a Sofia: Dilma, por governar o Brasil, perderá (já perdeu) sua relação com o cotidiano da vida, do amor e da amizade. É uma pena; mas sejamos egoístas: se ela for mesmo uma governante capaz de colocar sua função acima de sua vida concreta, sorte nossa.
Gostei do "cordiais", pois retrata como somos vistos e como nos comportamos. Acho que nossa resiliência vem daí, pelo fato de não pegarmos pesado contra as arbitrariedades de sempre fomos alvo, mas de reagirmos cordialmente, sem perder a esperança de encontrarmos um "salvador". Dilma não será vista como uma salvadora, mas como uma brava resiliente igual a nós. Parabéns pela postagem.
ResponderExcluirAcho importante uma mulher no poder. No fundo sempre achei que o poder é melhor exercido po elas.
ResponderExcluirMas "cordiais"?!
Aí fico com Darcy Ribeiro:
"Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da maldade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.
A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista."
Acho que a reflexão é muito pertinente, entretanto, gostaria de arriscar uma outra interpretação para o fato de ela ter enfrentado a doença sem abrir mão da vida pública. Não acho que é uma questão de uma vida estar acima da outra, acho que uma é inseparável da outra. Depois de tantos anos na vida pública, abrir mão dela, talvez seja uma forma de se entregar a morte, assim, persistir no trabalho e persistir com a vontade de viver.
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