02 fevereiro 2011

Todos os reis estão nus


Que Deus nos guarde de todos os que não enxergam sua própria nudez, sejam eles reis ou não



JÁ ESTÁ em cartaz (pré-estreia) "O Discurso do Rei", de Tom Hooper. O filme foi indicado ao Oscar em doze categorias; a atuação de Colin Firth (o rei) é tão inesquecível quanto a de Geoffrey Rush (o terapeuta).

Resumo. Quando George 5º morreu, o filho primogênito lhe sucedeu (com o nome de Eduardo 8º), mas por um breve período: logo ele abdicou, por querer uma vida diferente daquela que o ofício de rei lhe proporcionaria. Com isso, o cadete, duque de York, tornou-se rei -inesperadamente e num momento decisivo: era a véspera da Segunda Guerra Mundial.

O duque de York (e futuro George 6º) era tímido, temperamental e, sobretudo, gago -isso numa época em que, graças ao rádio, a oratória dos ditadores incendiava as praças do mundo: na hora do perigo, para que serve um rei se ele não consegue ser a voz que fala para o povo e por ele?

O filme, imperdível, conta a história (verídica) da relação entre o rei e seu terapeuta, Lionel Logue, um fonoaudiólogo australiano pouco ortodoxo. Eis algumas reflexões saindo do cinema.

1) Qualquer terapia começa com uma dificuldade prática: uma impotência, a necessidade de um conselho, uma estranha tensão nos ombros, uma gagueira. A relação terapêutica se constrói a partir dessa dificuldade: o terapeuta é quem saberá nos livrar do transtorno, seja ele fonoaudiólogo, terapeuta corporal, eutonista, psi (de qualquer orientação) etc.

Quer queira quer não, a ação do terapeuta é dupla: relaxaremos o ombro, exercitaremos a dicção ou endireitaremos o pensamento do paciente, mas, de uma maneira ou de outra, acabaremos mexendo nas fontes de um mal-estar mais geral que talvez se manifeste no transtorno.

2) Há, às vezes (mais vezes do que parece), escondidas no nosso âmago, ambições envergonhadas ou vergonhosas, que não confessamos nem a nós mesmos. Quando sua realização se aproxima, só podemos inventar jeitos de fracassar, porque, no caso, não nos autorizamos a querer o que desejamos.
Obviamente, detestamos a voz do terapeuta que se aventura a nos dizer o que queremos mas não nos permitimos. Essa voz atrevida é a única aliada de desejos que são nossos, mas que encontram um adversário até em nós mesmos.

3) No trabalho psicoterapêutico, o segredo de polichinelo é que, por mais que suspendamos diplomas em nossas salas de espera, somos todos leigos e aventureiros. Não sei se existem cursos ou estágios que ensinem a ouvir o que Logue ouve e entende do desejo escondido do duque de York. Certamente não há formações que ensinem a coragem maluca do terapeuta do rei, seu esforço para se colocar, sem medo, ao serviço do que o duque e futuro rei não quer saber sobre si mesmo.

4) Pensando bem, Logue (como Freud) tinha, sim, uma formação que o qualificava como conhecedor da alma humana e especialmente da dos reis: a leitura de Shakespeare.

5) Quase sempre, chega o dia em que um paciente descobre que seu terapeuta sabe muito menos do que ele (o paciente) imaginava. O paciente pode até pensar que o terapeuta, atrás de seu bricabraque de saberes práticos, é um impostor. É ótimo que isso aconteça, pois, geralmente, é sinal de que o paciente descobriu que ele também é um impostor. No caso, o terapeuta não é qualificado para ser terapeuta, exatamente como o rei não é qualificado para ser rei. (Parêntese: em geral, é assim que nasce uma amizade: os dois se tornam amigos por aceitarem estar ambos nus, como o rei da fábula - mesmo que seja só por um instante.)

Não há como ser terapeuta ou rei sem alguma impostura. Todos carregamos máscaras. Avançamos mascarados, enfeitados por mentiras que nos embelezam. Até aqui, tudo bem: essa impostura é uma condição trivial e necessária da vida social. Os melhores conhecem sua impostura e sabem que não estão à altura de sua máscara.

Os piores se identificam com sua máscara. Acreditar nas máscaras que vestimos é um delírio que nos torna perigosos. Não há diferença entre o rei que acreditasse ser rei, o terapeuta que acreditasse ser terapeuta e o anjo exterminador que saisse atirando e matando, perfeitamente convencido de ser uma figura do apocalipse. Os três teriam isto em comum: acreditariam ser a máscara que eles vestem.

Enfim, que Deus nos guarde de todos os que não enxergam sua própria nudez.

16 comentários:

  1. Texto magnífico. Eu tinha lido na Folha e iria postar no meu blog. Vim confirmar se já estava aqui.

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  2. Esse texto é absolutamente fantástico!
    "Perdi" amigos que vestiram determinada fantasia e a tomaram como realidade.
    A do pai de família sério...
    A do executivo importante...
    A do emergente novo rico que virou enólogo...

    Uma pobreza e uma tristeza.

    Somos finitos, não podemos nos dar ao luxo de sermos dissolvidos nessas bobagens.

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  3. Sou uma ex-assinante da folha, mas a minha parada semanal aqui é obrigatória.
    Texto genial e inspirador!
    Parabéns!

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  4. Como sempre, um texto que é um bisturi, cortando com precisão onde e quando necessário. Pena que tenha de terminar com "Deus isso, deus aquilo..."

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  5. Qual o problema dele terminar com "Deus isso, deus aquilo..."? O texto é dele, ele termina como ele quiaser ;)

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  6. obrigada, Contardo. Que texto esclarecedor. um bejo, déborah

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  7. Gostei!
    Todos nós somos reis.
    Nus.
    Muitos não têm olhos para ver.
    Em muitos está eu, inclusive. Quantas vezes!!!!
    Mas, Deus, sim. ELE vê.Desde todo Sempre.
    Queiram ou não queiram.

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  8. Genial! A minha máscara de terapeuta está realmente anos luz na minha frente.

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  9. ACABEI DE ASSISTIR "CISNE NEGRO" E ESTOU ESPERANDO ANSIOSAMENTE QUE O NOSSO QUERIDO CONTARDO ESCREVA SOBRE ESSE MARAVILHOSO CONFLITO PSICOLÓGICO.

    ABÇS,

    Paula

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  10. Sou fonoaudióloga , adorei seu texto e seu blog, passarei sempre por aqui um abraço!

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  11. Adoro seus textos, me ajudam bastante na construção do meu discernimento. Tenho um blog com textos bem densos; talvez com sentido para alguns, talvez errado para outros.
    Se tiver um tempinho dê uma olhada.
    http://mentesarcaicas.blogspot.com
    Um grande abraço!

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  12. Parabéns Calligaris... Mais uma vez vc arrasou... Também estou aguardando um comentário seu sobre "Cisne Negro"... que respeitando as diferenças, é tão fantástico quanto o "Discurso do Rei"... Vai ver que é porque a identificação projetiva com a perversidade seja uma "fantasma" gritante em todos nós...
    Abraço grande...

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  13. O texto é bom e perturbador, especialmente no ponto 2).
    Mas discordo do 5), quando diz "Os melhores conhecem sua impostura e sabem que não estão à altura de sua máscara". Você acha que estaremos sempre abaixo das nossas máscaras?
    Esse derrotismo é honesto com a gente mesmo, se as nossas imposturas nada mais são que uma condição pro convívio social?

    Visite meus devaneios quando puder:

    http://devaneiosedescaramentos.blogspot.com/

    Saudações.

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  14. Contardo

    O que vc pensa sobre Carl Rogers?

    Abraço

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  15. Contardo Calligaris:

    Sábias as suas palavras, como sempre!
    Agora, eu só queria lembrar o Bernardo Soares, no Livro do Desassossego...a nos dizer que a nudez é rara, por mais que tiremos a roupa, não conseguimos nos despir...porque a liberdade maior é estarmos sós!...

    Abraço (que é para nenhum de nós estar só...ehe)

    Gisele Wolkoff

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