02 fevereiro 2012
HOMENS ou MULHERES?
Em matéria de gênero e orientação sexual, os caminhos não são fixos e claros desde a infância
Há três anos, Laerte, 60, cartunista da Folha, usa roupas femininas e maquiagem em seu dia a dia. Na terça retrasada, pelo protesto de uma cliente que o reconheceu como Laerte (e, portanto, como homem), ele foi proibido de ter acesso ao banheiro feminino de uma pizzaria paulistana.
Quem está certo, Laerte ou a cliente que protestou? A questão é, no mínimo, complexa.
Em regra, na nossa cultura, na hora de usar um banheiro público, a gente se divide em HOMENS e MULHERES. Por quê? Perguntei ao meu redor e obtive dois tipos de respostas.
1) Na hora em que nos dedicamos a funções que são naturais, mas das quais nos envergonhamos, é mais confortável saber que não seremos objetos de desejo sexual.
Problema: segundo esse princípio, os homossexuais masculinos deveriam frequentar os banheiros femininos e vice-versa. E os bissexuais fariam xixi em qual banheiro?
2) A divisão dos banheiros públicos não teria a ver com o sexo, mas com o gênero. Seja qual for o objeto de nosso desejo, na hora de exercer as funções excretórias, preferiríamos estar entre pessoas com uma anatomia igual à nossa. Nesse caso, Laerte, que só se veste de mulher, não poderia usar o banheiro feminino.
Problema: o que aconteceria com um(a) travesti ou com um(a) transexual, ou seja, com alguém que transforma seu corpo até encarnar o gênero oposto? Yasmin Lee, Lea T ou um transexual de mulher para homem iriam para qual banheiro?
Simplificando ao máximo, na esperança de esclarecer:
"Cross-dresser" é quem gosta de se vestir com roupas do outro sexo -ocasionalmente ou, como Laerte, o tempo inteiro. Isso não implica uma preferência sexual específica. Muitos "cross-dressers" masculinos desejam só mulheres. Outros se mantêm castos, porque seu único prazer está no fato de habitar, por assim dizer, a pele do outro gênero.
"Travesti" implica uma transformação do corpo (hormônios, implantes) e a presença de uma fantasia sexual, que é diferente para cada um, mas na qual a "ambiguidade" do travesti funciona como um fetiche (para ele mesmo e para os outros).
Ser "transgênero" ou "transexual" significa ter a clara sensação de que seu corpo é inconciliável com seu sentimento profundo de identidade: você nasceu num corpo errado, que você odeia, sobretudo a partir da puberdade, quando ele desenvolve seus atributos de gênero. Os primeiros capítulos do livro de João Nery, "Viagem Solitária, Memórias de um Transexual 30 Anos Depois" (Leya), são perfeitos para entender o drama de quem descobre que ele discorda de seu próprio corpo.
A condição de transexual é independente de orientação ou preferência sexuais. Posso nascer num corpo de mulher e desejar homens, mas viver esse corpo como uma prisão e querer (ou melhor, precisar) me tornar homem; mudando de gênero, continuarei desejando homens. No fim, nascido mulher, eu me tornarei homem homossexual. Só para atrapalhar: qual banheiro frequentarei?
Na realidade complexa (e confusa) de sexo, gênero e orientação sexual, as categorias que descrevi se misturam e não designam destinos -ainda menos destinos claramente reconhecíveis desde a infância.
No lindo, delicado (e imperdível) filme de Céline Sciamma, "Tomboy" (maria-rapaz), a jovem Laura (extraordinária Zoé Héran) se vale de sua bonita figura andrógina (a puberdade ainda não chegou) para passar por menino entre seus novos amigos.
No fim, o espectador decide: o que foi que a gente viu? O começo de um mal-estar transexual? O nascimento de uma homossexualidade? Ou apenas a brincadeira de um verão, que permanecerá como uma lembrança divertida num futuro heterossexual e sem incertezas? Não sabemos e, de fato, nada permite dizer.
Aos nove anos, a menina que seria João Nery foi levada a uma terapeuta. A razão era que ela agia e pensava como um menino, e a mãe gostaria que lhe explicassem o porquê dessa conduta e lhe dissessem como ela deveria se comportar diante disso.
Nery escreve: "O diagnóstico indicou que era fixado no meu pai, com uma necessidade de imitá-lo por ser a filha do meio. Assim, tentava me sobressair para ter mais atenção e afeto. Minha mãe não deveria me forçar, impingindo-me roupas femininas ou coisas do gênero, pois tudo passaria com a idade".
Com a idade, nada passou. A terapeuta se enganou? Não exatamente: ela não tinha mesmo como saber.
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Bem lembrado, Tomboy mexe com essa textura, do inacabado, do que não pode ser predito. Delicadamente somos levados à ambiência do indefinido e, de quebra, saímos do cinema diferentes, pelo menos com a sensação de que a sexualidade é muito mais do que nossos cromossomos ditam, transcende o cultural e entra indefectível nos domínios da ética.
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