08 fevereiro 2012
Os diferentes são todos doentes?
Perdoamos facilmente, mas não é por misericórdia, é porque desculpamos os "doentes". É um progresso?
Aconteceu no mesmo dia. Primeiro, houve uma mãe falando da homossexualidade do filho, que ela, em tese, acabava de descobrir: "É uma doença, não é?", perguntou. Ela queria encontrar, na minha confirmação, uma razão de perdoar o filho por ele ser como é.
Mais tarde, alguém, falando de um parente próximo que é toxicômano, afirmou mais do que perguntou: "Ele é doente" -no tom de quem procura uma confirmação que permita perdoar o inelutável.
Nos dois casos, respondi com cautela, mais ou menos desta forma: "Certo, deve haver razões para ele ser assim, mas ele não é doente como alguém que pega um vírus ou uma bactéria, nem como alguém que seja invadido por um câncer".
A observação convidava meus interlocutores a questionar o que eles entendiam por "doente".
A mãe do primeiro exemplo acrescentou que, de fato, não devia se tratar tanto de uma doença quanto de uma disposição genética.
Meu segundo interlocutor poderia ter dito a mesma coisa. Afinal, logo na sexta passada, a revista "Science" publicou uma pesquisa de Karen Ersche, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), defendendo a tese de que existe uma predisposição genética à toxicomania (veja-se o caderno "Saúde" da Folha de 3 de fevereiro e o texto original por www.migre.me/7OLiy -de fato, sem entrar em detalhes, a pesquisa de Ersche mostra que deve haver uma predisposição genética à toxicomania, embora essa predisposição não sele o destino de ninguém).
Desde quinta-feira passada, também recebi vários comentários à minha última coluna: muitos diziam que, claro, "cross-dressers", travestis e transexuais devem ser tratados com respeito por uma razão simples: "eles são doentes".
Parece que a possibilidade de respeitar a diferença passa pelo reconhecimento de que essa diferença constitui uma patologia ou uma espécie de malformação congênita (no fundo, a exceção genética é isso).
Alguns perguntarão: "não é melhor assim?". Sem essa "injeção" de patologia (ou de teratologia), os diferentes seriam apenas julgados em nome de um moralismo qualquer: os drogados seriam vagabundos, os homossexuais, sem-vergonhas, e, quanto aos "cross-dressers" e etc., nem se fala.
Em outras palavras, a substituição da moral tradicional ou religiosa pela medicina, em geral, produz uma nova tolerância das diferenças: elas não são punidas, são diagnosticadas.
Mais um exemplo. Obviamente, para nossa proteção, não deixamos de prender os criminosos, mas já "sabemos" que muitos deles não são "ruins", eles só têm um problema de córtex pré-frontal -por causa dessa malformação, continuam impulsivos que nem adolescentes.
O neurocientista David Eagleman ("Incógnito", ed. Rocco) chegou a propor que a gente treine nossos criminosos de modo que eles gozem de uma "normalidade" cerebral parecida com a da gente. Aí, sim, poderíamos condená-los com toda justiça. Sem isso, puniríamos "doentes", não é?
Perdoamos facilmente, mas não é por misericórdia ou compreensão, é porque respeitamos e desculpamos doentes e vítimas de anomalias genéticas. É um progresso?
Acima de seu sistema jurídico, cada sociedade produz e alimenta um sistema de crenças, regras e expectativas que facilita a coexistência mais ou menos harmoniosa de seus cidadãos.
Para essa função, a modernidade escolheu a medicina (do corpo e das almas). Com isso, o controle sobre nossas vidas seria aparentemente mais suave, mais "liberal". Mas é só uma aparência.
Pense bem. Certo, se toda exceção ou anormalidade for doença ou malformação, os diferentes não serão propriamente punidos. No entanto, a sociedade esperará que eles sejam "curados".
Outro "problema": se os desvios da norma forem tolerados por serem efeitos de doença ou malformação, o que aconteceria com quem pratica desvios, mas não apresenta as "malformações" que o desculpariam?
O que acontece se eu quero me drogar, ser "cross-dresser" ou, mais geralmente, infrator só porque estou a fim de uma "farra" e sem poder alegar nenhuma das predisposições genéticas para essas "condições"? Aí vai ser o quê? Voltamos às punições corporais?
Em suma, gostaria que fosse possível ser anormal sem ser "doente". E, se fosse o caso, me sentiria mais livre sendo punido do que sendo "curado".
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Rodrigo Cherez escreveu:
ResponderExcluirLembrei daquele livro "O alienista", acho que do Machado. Não conheço muito as ciências do comportamento, mas me passa a impressão de que todos temos uma "doença", seja por rabalhar demais, trabalhar de menos, gostar de video-game e assim por diante. Qualquer comportamento é "classificável".
E, saindo das patologias e indo para as predisposições genéticas, as pesquisas parecem partir do princípio de que "Deus não joga dados". Não duvido que logo "descubram" genes que nos tornem mais tolerantes a regimes totalitários, mais adeptos do livre arbítrio etc.
Em 13 de fevereiro de 2012 20:42, FELIPE CARVALHO NOVAES
ResponderExcluirescreveu:
"Mais um exemplo. Obviamente, para nossa proteção, não deixamos de prender os criminosos, mas já "sabemos" que muitos deles não são "ruins", eles só têm um problema de córtex pré-frontal -por causa dessa malformação, continuam impulsivos que nem adolescentes."
Acho que houve aí uma má compreensão do que realmente é dito. É sabido pela literatura médicas que os psicopatas, por exemplo, possuem realmente estruturas diferentes em seu cérebro, inclusive diferenças no córtex pré-frontal e sistema límbico. Ou seja, o psicopata, por uma questão de formação cerebral mesmo, possui uma atividade diferente mesmo no que concerne à expressão, interpretação e administração emocional. Esses indivíduos são maléficos, de fato, o que é explicado pelo que falei acima,
mas isso nunca pode usado como uma espécie de justificativa para os crimes que ele comete, sejam os dignos de um serial killer ou simples crimes brancos. Então, a afirmativa correta seria que eles são sim ruins, mas vamos explicar o porquê. E o caso da ´psicopatia representa um um assunto sui generis porque é um dos únicos casos em que o indivíduo - até onde sabemos - não consegue escapar da sua natureza emocional deficiente, apesar de receber tratamento de diversas naturezas.
Rodrigo,
Não é que isso seja uma doença, com relação |à esses comportamentos
excessivos que vc passou. Isso passa a ser passível de tratamento
psiquiátrico ou psicológico quando tais atividades em excesso começam a
representar problemas para o indivíduo que ele mesmo atesta, e que, no entanto, não é capaz de mudá-los. Aí sim falamos numa patologia que deve ser tratada. Mas, no entanto, se o indivíduo possui alguma desses quadros mas convive bem com eles, não há porquê impor a ida ao terapeuta.
"E, saindo das patologias e indo para as predisposições genéticas, as pesquisas parecem partir do princípio de que "Deus não joga dados"."
Essa parte não entendi.
Em 14 de fevereiro de 2012 12:05, Rodrigo Cherez
ResponderExcluirescreveu:
Bom dia, Felipe
O ponto que você colocou, de causar prejuízos à pessoa, e ela estar consciente disso e não conseguir se livrar, é relevante. Concordo.
Já a parte de jogar dados, a ideia era que, às vezes, tenho a impressão de que muitas pesquisas partem do pressuposto de que nossos comportamentos estão ligados a questões genéticas, de que nosso destino já está traçado, não existindo muito espaço para o desenvolvimento individual, para pensar sobre um assunto e tirar as próprias conclusões. É mais ou menos isso.
Felipe Novaes escreveu: Mas o fato de que nosso comportamento está ligado à genética é algo hoje bm
ResponderExcluirestabelecido. O que ocorre é que até os especialistas que criticam essa
visão nem mesmo compreendem corretamente o que a genética tem a contribuir
no comportamento humano. Muitas vezes o argumento é: o homem não é definido
pela genética, o homem é histórico e bláblá. Ué, mas nenhuma pesquisa que
se utiliza da genética diz isso. O que se observa como conclusão é que
existem sim características essenciais do comportamento que são ligadas à
genética, mas isso não significa que a genética determine um comportamento.
A genética responde ao estímulo ambiental sempre...os genes não fazem nada
por si mesmos. É tudo modulado pelo ambiente.