28 fevereiro 2002

Vida e morte de um ideal: Jack Henry Abbott

No dia 10 de fevereiro, na cela de um presídio de segurança máxima do Estado de Nova York, Jack Henry Abbott, 58, trançou seus cadarços com seus lençóis e enforcou-se.

Abbott foi preso muito jovem por estelionato. Na cadeia, ele matou outro prisioneiro durante uma briga. Condenado, continuou atrás das grades. A lei americana permite que, uma vez esgotada a pena mínima prevista pelo crime, o detento possa pedir sua liberdade condicional. Os pedidos de Abbott foram sistematicamente recusados por ele ser terrivelmente rebelde. Passava mais tempo nas solitárias do que nas celas comuns.

Em 1980, Norman Mailer, escritor americano, pesquisava a vida carcerária. Abbott conseguiu fazer-lhe chegar uma carta, começando assim uma longa correspondência. Mailer foi conquistado pelas histórias, pelas idéias e pela prosa de Abbott. Logo as cartas do presidiário foram editadas num livro: "In the Belly of the Beast" (No ventre da besta). Mailer escreveu o prefácio.

Graças à publicação do livro e ao apoio dos círculos literários progressistas, Abbott obteve, enfim, a liberdade condicional. Cartas de editores e do próprio Mailer garantiram, perante a comissão que examinava o pedido de Abbott, que ele voltaria para a sociedade tornando-se escritor em Nova York.

Abbott foi para Nova York. Mas, seis semanas após sua liberação, ele envolveu-se numa briga e, numa ruela do East Village, matou a facadas Richard Adan, 22, superintendente noturno de um bar. Consternação de Mailer e dos outros protetores. Abbott voltou para trás das grades, de onde, em 1987, publicou outro livro, "My Return" (Minha volta) -uma versão teatral do processo pelo assassinato de Adan (em que ele foi condenado à prisão perpétua). Enfim, poucos dias atrás, como já disse, o eterno presidiário conseguiu sair da prisão. De vez.

Li o primeiro depoimento de Abbott quando saiu, no começo dos anos 80. Poucos anos antes, Michel Foucault publicara "Vigiar e Punir" (1975). Segundo o espírito da época, os presos, depois dos loucos, passavam a fazer parte dos marginais cuja revolta poderia redimir o mundo. Para quem acreditasse na revolução dos derrelitos, o livro de Abbott era perfeito: a partir do relato de uma vida desperdiçada, ele gritava sua revolta contra a sociedade inteira.

Nessas semanas, reli "In the Belly of the Beast" e li, pela primeira vez, "My Return". A força do texto permanece intata. Abbott continua sendo um dos críticos mais virulentos do sistema carcerário. Ainda vale seu argumento mais famoso: queremos reeducar quem erra para que ele possa integrar-se numa sociedade de homens livres. Para isso, encerramos o sujeito numa prisão. Curioso método pedagógico, não é?

É possível ver, no destino de Abbott, uma ilustração dos paradoxos da exigência de liberdade que está ao centro de nossa cultura. Um ideal de autonomia absoluta nos define. Ele nos fustiga sobretudo no momento da adolescência, quando cada um descobre que parte de sua liberdade será sacrificada sobre o altar da integração social. Abbott foi para a prisão bem nessa altura da vida e sua história demonstra que aprisionar um adolescente não é uma boa idéia. Ele tornou-se adulto na prisão: todas as leis da convivência social lhe apareceram na forma de imposições brutais. Nessa condição, ele escolheu a intransigência: a solitária parecia-lhe preferível a qualquer obediência.

Abbott se proclamava comunista e marxista. Em seu primeiro livro, ele elogiava Castro e Lênin por eles terem respeitado e amparado, respectivamente, as prostitutas e os sodomitas. Estranho? Nem um pouco: comunismo significava, para ele, não só oposição radical à sociedade que o prendia, mas, sobretudo, abolição do Estado e de qualquer autoridade sobre o indivíduo. O "comunismo" de Abbott é, de fato, um extremismo anárquico e individualista.
É fácil perdoar a ingenuidade do presidiário autodidata. Tanto mais que, na cultura americana, sob qualquer denominação (comunismo, socialismo etc.), corre quase sempre apenas um anseio revolucionário: o da liberdade individual.

Mais difícil é desculpar Mailer, que, no prefácio do livro de Abbott, apresentava o autor como o "descendente de Marx e Lênin" e acrescentava: "Abbott, que é meio irlandês e meio chinês, tem uma pequena mas clara semelhança com Lênin, e o tom de Vladimir Ilitch Ulianov surge de algumas dessas páginas".

As palavras de Mailer são ridículas (pelo excesso). Ao mesmo tempo, elas não são de todo estrangeiras: assim como Mailer, muitos somos fascinados pela marginalidade, propensos a idealizar o crime. Podemos execrar o gesto criminoso que nos impede de viver em paz, mas o mesmo gesto nos seduz de alguma forma. Hollywood explora, mas não produz esse fascínio, que é um verdadeiro corolário de nossa cultura. Pois olhamos para os Abbotts da vida como se eles encenassem, para nós, a autonomia absoluta que, idealmente, nos define -aquela autonomia louca que sacrificamos para conviver.

21 fevereiro 2002

Sequestros: uma imagem de nosso arcaísmo

Domingo à noite, caminhava na Paulista. Na frente do Masp, um homem se colocou no meu caminho e me forçou a parar, abrindo os braços como um defensor num jogo de basquete. Enfim, com a língua presa e um tom de bêbado, pediu-me a hora. Pensei num instante: melhor assim, ele quer apenas meu relógio. Ou vai ver que é um truque: quando eu baixar os olhos para meu pulso, aparecerá um cúmplice armado. Respondi, então, sem consultar o relógio: "11 horas".
Ele me agradeceu e foi embora, comentando que, de qualquer forma, naquela noite, ele não ia voltar para casa, porque as mulheres e os filhos... As palavras se perderam na distância.

O alívio inicial durou pouco. Logo senti uma irritação revoltada. Em tempos ou lugares diferentes, eu mesmo teria começado um papo. Talvez propusesse a meu interlocutor que nos sentássemos juntos no meio-fio da calçada e que ele me explicasse direito o que as mulheres e os filhos querem da gente.

Pode ser que, por sorte, eu não seja nunca sequestrado ou assaltado. Tanto faz, pois já estou sendo roubado: a suspeita e a desconfiança permanentes me privam da possibilidade de escutar um desconhecido. Seja ele um menino que oferece chiclete, um homem que vende flores, um mendigo ou, simplesmente, um cara perdido que pergunta a hora. Era só o que nos faltava: essa paranóia forçada sobrepõe-se a desigualdades que já são monstruosas e consegue aumentar ainda mais a distância social.

Raiva e frustração. A vontade é grande de encontrar e chutar de vez o pau que sustentaria toda essa barraca de sequestros, violência e injustiça social.

Deve ser por isso que, na pressa destes dias, a economia de mercado, o liberalismo ou o neoliberalismo são acusados de serem a causa de todos os nossos males. Na Folha de 2 de fevereiro, por exemplo, Marilene Felinto via a onda de sequestros que assola São Paulo como uma espécie de triunfo do mercantilismo. Teríamos, em suma, os criminosos que a modernidade merece.

Simpatizo com a indignação, mas a idéia não cola muito bem, pois o sequestro não é uma invenção liberal. Seu protótipo é uma atividade própria de economias pré-modernas: a captura de escravos. Na África, assim como na bacia do Mediterrâneo, durante muitos séculos, foi praxe econômica capturar o vizinho e vendê-lo a um terceiro ou, então, negociar o valor de um resgate, no caso em que a família do cativo tivesse posses. O pagamento de um sequestro tem mais a ver com uma alforria do que com o preço de uma mercadoria. O sequestro, em suma, não é o corolário nefasto e exemplar da economia de mercado. Ao contrário, ele é um arcaísmo, um resto de antigas formas de domínio que nossa sociedade praticou durante séculos e às quais ela não sabe renunciar.

Vivemos uma contradição constante entre nossas aspirações modernas e a vontade de preservar uma ordem social de privilégios garantidos. Queremos viver num shopping center, mas, ao mesmo tempo, desejamos também manter ativas e separadas as senzalas e as casas-grandes.

Nossos criminosos vivem a mesma contradição. De acordo com a economia de mercado, eles procuram riquezas, mas o estilo de seus atos criminosos revela outra prioridade: dominar a vítima, submeter seu corpo, é tão importante quanto apoderar-se de seus bens. Nossos ladrões de residências esperam que o dono esteja em casa e escolhem assaltar com violência, enquanto poderiam, discretamente, visitar apenas casas desertas. Do mesmo jeito, nossos ladrões de carro se interessam pouco por carros estacionados; eles preferem arrancar o motorista de seu lugar. Furtar não está com nada, roubar é que é bom. O sequestro é o auge e a solução dessa contradição: sequestrando, é possível ganhar um dinheiro e, ao mesmo tempo, gozar de um poder absoluto sobre o corpo da vítima.

A economia de mercado inventou um mundo em que a diferença social pode ser organizada pela distribuição (variável) de bens e riquezas. Em princípio, nós nos distinguimos pelas posses ou pelo consumo, não por privilégios de nascença e ainda menos pela força. Ora, a prática do sequestro expressa a nostalgia de um mundo pré-moderno, em que a captura é a verdadeira afirmação de supremacia. Não é preciso comparar marcas de carro, casas na praia ou qualidades dos vinhos que tomamos: quem se deixa prender está por baixo.

Claro, a estética do mercado é cafona, kitsch. E sua ética é pouco heróica. Afirmar-se esbanjando consumo é menos dramático do que enfrentar a rua de arma ou espada na mão. Claro, o desejo de ter mais bugiganga do que meu vizinho não é uma fantasia muito nobre.

Querer esmagá-lo de inveja é mesquinho, mas talvez seja mais civilizado do que esmagar seu corpo a marteladas ou prendê-lo num cubículo.

Em suma, vivemos um conúbio estranho entre nossos sonhos liberais de consumo e nossa nostalgia de um passado escravagista. Nossos criminosos, já disse, vivem o mesmo conúbio: gostam de sequestrar porque, em nossa cultura, parece que enriquecer é um prazer, mas dominar é um prazer maior.

14 fevereiro 2002

Entre POA e NY: mal-entendidos e um grito de guerra



Em 2001 , participei do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Neste ano, acompanhei Porto Alegre pela imprensa e estive em Nova York durante o Fórum Econômico Mundial. Fiquei sobretudo nas ruas, onde se expressava o dissenso.

Nos auditórios, reinavam as boas intenções: uma distribuição mais igualitária das riquezas mundiais melhorará a vida de todos. Como não concordar com isso?

Mas os repetidos mea-culpa dos painelistas do Fórum de Nova York me deixaram perplexo: talvez essas generosas propostas fossem uma estratégia para manipular o clamor da rua. Por que vocês gritariam tanto, se nós, aqui, nos salões do hotel Waldorf Astoria, temos preocupações parecidas com as suas?

Imaginemos que o povo chegue às portas do palácio pedindo participação política e que a rainha jogue pela janela moedas, pães ou mesmo brioches. Talvez a rainha seja generosa. Mas o fato é que, com essa generosidade, ela pode produzir um mal-entendido útil (para ela): quem sabe o povo acredite que seu desiderato está inesperadamente chovendo do céu e esqueça, assim, seu pedido de participação política.

Duvido que esse mal-entendido pegue. Claro, a nova esquerda tem uma veia igualitária que pode ser ninada pela promessa de redistribuir riquezas. Mas o espírito de Seattle é sobretudo libertário. As multinacionais e os investidores globais não deixariam de ser seus inimigos, mesmo que conseguissem abolir toda a miséria do mundo. Pois a revolta nasce da constatação de que há entidades que decidem sobre nossas vidas concretas, mas, por serem supranacionais, escapam ao controle dos governos e, portanto, ao nosso. E pouco importa que essas entidades sejam generosas ou não.

Posso eleger deputados, senadores e presidentes. Com isso, participo um pouco em decisões legislativas e políticas que pesam em minha vida. Mas ninguém me consulta para eleger o próximo diretor de uma multinacional cujas escolhas também mudam drasticamente meu cotidiano. Em suma, a generosidade dos poderosos, por sincera que seja, não responde às razões da revolta de hoje. O tumulto não acabará em brioche.

Em Porto Alegre, obviamente, ninguém tentou amansar a nova esquerda à força de brioches. Ao contrário: sua radicalidade foi valorizada como uma prova de parentesco revolucionário entre o espírito de Seattle e a esquerda tradicional. Mas isso também é um mal-entendido.

No semanal nova-iorquino "Village Voice" de 5 de fevereiro, E. Kaplan entrevista uma jovem ativista da nova esquerda. Ela ficou famosa por aparecer num vídeo dos conflitos de rua em Seattle declarando, por baixo do lenço preto que protegia seu rosto: "Sempre quis fazer parte de uma revolução". Seu pseudônimo é Warcry, que significa grito de guerra. Na entrevista, ela explica um pouco de que revolução se trata. Ao falar dos valores que lhe importam, declara: "O sonho americano está morto. Mas há certos ideais americanos, liberdade de palavra, liberdade de reunião, liberdade de discordar -essas são coisas em que acredito e que gostaria de tornar reais".

Imaginemos que as palavras de Warcry sejam representativas. Surgem, então, dois problemas para que seja possível uma aliança ou mesmo um simples encontro entre o espírito de Seattle e a esquerda tradicional.

Primeiro: há o risco de um conflito ideológico. Warcry é, por assim dizer, uma extremista liberal. As liberdades em que ela acredita foram inventadas e promovidas em sociedades liberais. Ainda não foi provado que a plena liberdade do indivíduo seja compatível com uma organização econômica diferente da liberal. Dito com pedantismo: até agora, ninguém viu Montesquieu passear sem Adam Smith. Nenhuma contradição entre isso e a luta de Warcry contra o neoliberalismo globalizado. Justamente Adam Smith, o pai do liberalismo, era pródigo de recomendações para evitar que o sistema produzisse monstros (megaempresas, cartéis, multinacionais etc.). Em suma, a sociedade ideal da nova esquerda seria, provavelmente, um mundo de artesãos independentes e de pequenos proprietários rurais, livres e alérgicos a qualquer forma de poder central. É um sonho distante do gosto da esquerda tradicional por Estado e partido.

Segundo: há um problema de convivência. A retórica coletiva da esquerda institucional é infrequentável para o espírito de Seattle. Warcry, por exemplo, seria a primeira a entusiasmar-se pelo projeto de impor uma reforma agrária de foice na mão. Mas é provável que, confrontada com a dita "mística" coletiva do MST, ela jogaria no palanque as pedras que guardava para os capatazes dos latifundiários.

Faça a experiência: leia "Sem Logo", o livro de Naomi Klein que inspira a revolta da nova esquerda contra um mundo social e esteticamente desfigurado pelas marcas, pelos logos. Essa leitura terminada, imagine um jovem ativista, leitor de Klein, no meio de um comício de mil pessoas, todas de boné vermelho da CUT. Como você acha que ele se sentiria?