14 fevereiro 2002
Entre POA e NY: mal-entendidos e um grito de guerra
Em 2001 , participei do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Neste ano, acompanhei Porto Alegre pela imprensa e estive em Nova York durante o Fórum Econômico Mundial. Fiquei sobretudo nas ruas, onde se expressava o dissenso.
Nos auditórios, reinavam as boas intenções: uma distribuição mais igualitária das riquezas mundiais melhorará a vida de todos. Como não concordar com isso?
Mas os repetidos mea-culpa dos painelistas do Fórum de Nova York me deixaram perplexo: talvez essas generosas propostas fossem uma estratégia para manipular o clamor da rua. Por que vocês gritariam tanto, se nós, aqui, nos salões do hotel Waldorf Astoria, temos preocupações parecidas com as suas?
Imaginemos que o povo chegue às portas do palácio pedindo participação política e que a rainha jogue pela janela moedas, pães ou mesmo brioches. Talvez a rainha seja generosa. Mas o fato é que, com essa generosidade, ela pode produzir um mal-entendido útil (para ela): quem sabe o povo acredite que seu desiderato está inesperadamente chovendo do céu e esqueça, assim, seu pedido de participação política.
Duvido que esse mal-entendido pegue. Claro, a nova esquerda tem uma veia igualitária que pode ser ninada pela promessa de redistribuir riquezas. Mas o espírito de Seattle é sobretudo libertário. As multinacionais e os investidores globais não deixariam de ser seus inimigos, mesmo que conseguissem abolir toda a miséria do mundo. Pois a revolta nasce da constatação de que há entidades que decidem sobre nossas vidas concretas, mas, por serem supranacionais, escapam ao controle dos governos e, portanto, ao nosso. E pouco importa que essas entidades sejam generosas ou não.
Posso eleger deputados, senadores e presidentes. Com isso, participo um pouco em decisões legislativas e políticas que pesam em minha vida. Mas ninguém me consulta para eleger o próximo diretor de uma multinacional cujas escolhas também mudam drasticamente meu cotidiano. Em suma, a generosidade dos poderosos, por sincera que seja, não responde às razões da revolta de hoje. O tumulto não acabará em brioche.
Em Porto Alegre, obviamente, ninguém tentou amansar a nova esquerda à força de brioches. Ao contrário: sua radicalidade foi valorizada como uma prova de parentesco revolucionário entre o espírito de Seattle e a esquerda tradicional. Mas isso também é um mal-entendido.
No semanal nova-iorquino "Village Voice" de 5 de fevereiro, E. Kaplan entrevista uma jovem ativista da nova esquerda. Ela ficou famosa por aparecer num vídeo dos conflitos de rua em Seattle declarando, por baixo do lenço preto que protegia seu rosto: "Sempre quis fazer parte de uma revolução". Seu pseudônimo é Warcry, que significa grito de guerra. Na entrevista, ela explica um pouco de que revolução se trata. Ao falar dos valores que lhe importam, declara: "O sonho americano está morto. Mas há certos ideais americanos, liberdade de palavra, liberdade de reunião, liberdade de discordar -essas são coisas em que acredito e que gostaria de tornar reais".
Imaginemos que as palavras de Warcry sejam representativas. Surgem, então, dois problemas para que seja possível uma aliança ou mesmo um simples encontro entre o espírito de Seattle e a esquerda tradicional.
Primeiro: há o risco de um conflito ideológico. Warcry é, por assim dizer, uma extremista liberal. As liberdades em que ela acredita foram inventadas e promovidas em sociedades liberais. Ainda não foi provado que a plena liberdade do indivíduo seja compatível com uma organização econômica diferente da liberal. Dito com pedantismo: até agora, ninguém viu Montesquieu passear sem Adam Smith. Nenhuma contradição entre isso e a luta de Warcry contra o neoliberalismo globalizado. Justamente Adam Smith, o pai do liberalismo, era pródigo de recomendações para evitar que o sistema produzisse monstros (megaempresas, cartéis, multinacionais etc.). Em suma, a sociedade ideal da nova esquerda seria, provavelmente, um mundo de artesãos independentes e de pequenos proprietários rurais, livres e alérgicos a qualquer forma de poder central. É um sonho distante do gosto da esquerda tradicional por Estado e partido.
Segundo: há um problema de convivência. A retórica coletiva da esquerda institucional é infrequentável para o espírito de Seattle. Warcry, por exemplo, seria a primeira a entusiasmar-se pelo projeto de impor uma reforma agrária de foice na mão. Mas é provável que, confrontada com a dita "mística" coletiva do MST, ela jogaria no palanque as pedras que guardava para os capatazes dos latifundiários.
Faça a experiência: leia "Sem Logo", o livro de Naomi Klein que inspira a revolta da nova esquerda contra um mundo social e esteticamente desfigurado pelas marcas, pelos logos. Essa leitura terminada, imagine um jovem ativista, leitor de Klein, no meio de um comício de mil pessoas, todas de boné vermelho da CUT. Como você acha que ele se sentiria?
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