21 fevereiro 2002

Sequestros: uma imagem de nosso arcaísmo

Domingo à noite, caminhava na Paulista. Na frente do Masp, um homem se colocou no meu caminho e me forçou a parar, abrindo os braços como um defensor num jogo de basquete. Enfim, com a língua presa e um tom de bêbado, pediu-me a hora. Pensei num instante: melhor assim, ele quer apenas meu relógio. Ou vai ver que é um truque: quando eu baixar os olhos para meu pulso, aparecerá um cúmplice armado. Respondi, então, sem consultar o relógio: "11 horas".
Ele me agradeceu e foi embora, comentando que, de qualquer forma, naquela noite, ele não ia voltar para casa, porque as mulheres e os filhos... As palavras se perderam na distância.

O alívio inicial durou pouco. Logo senti uma irritação revoltada. Em tempos ou lugares diferentes, eu mesmo teria começado um papo. Talvez propusesse a meu interlocutor que nos sentássemos juntos no meio-fio da calçada e que ele me explicasse direito o que as mulheres e os filhos querem da gente.

Pode ser que, por sorte, eu não seja nunca sequestrado ou assaltado. Tanto faz, pois já estou sendo roubado: a suspeita e a desconfiança permanentes me privam da possibilidade de escutar um desconhecido. Seja ele um menino que oferece chiclete, um homem que vende flores, um mendigo ou, simplesmente, um cara perdido que pergunta a hora. Era só o que nos faltava: essa paranóia forçada sobrepõe-se a desigualdades que já são monstruosas e consegue aumentar ainda mais a distância social.

Raiva e frustração. A vontade é grande de encontrar e chutar de vez o pau que sustentaria toda essa barraca de sequestros, violência e injustiça social.

Deve ser por isso que, na pressa destes dias, a economia de mercado, o liberalismo ou o neoliberalismo são acusados de serem a causa de todos os nossos males. Na Folha de 2 de fevereiro, por exemplo, Marilene Felinto via a onda de sequestros que assola São Paulo como uma espécie de triunfo do mercantilismo. Teríamos, em suma, os criminosos que a modernidade merece.

Simpatizo com a indignação, mas a idéia não cola muito bem, pois o sequestro não é uma invenção liberal. Seu protótipo é uma atividade própria de economias pré-modernas: a captura de escravos. Na África, assim como na bacia do Mediterrâneo, durante muitos séculos, foi praxe econômica capturar o vizinho e vendê-lo a um terceiro ou, então, negociar o valor de um resgate, no caso em que a família do cativo tivesse posses. O pagamento de um sequestro tem mais a ver com uma alforria do que com o preço de uma mercadoria. O sequestro, em suma, não é o corolário nefasto e exemplar da economia de mercado. Ao contrário, ele é um arcaísmo, um resto de antigas formas de domínio que nossa sociedade praticou durante séculos e às quais ela não sabe renunciar.

Vivemos uma contradição constante entre nossas aspirações modernas e a vontade de preservar uma ordem social de privilégios garantidos. Queremos viver num shopping center, mas, ao mesmo tempo, desejamos também manter ativas e separadas as senzalas e as casas-grandes.

Nossos criminosos vivem a mesma contradição. De acordo com a economia de mercado, eles procuram riquezas, mas o estilo de seus atos criminosos revela outra prioridade: dominar a vítima, submeter seu corpo, é tão importante quanto apoderar-se de seus bens. Nossos ladrões de residências esperam que o dono esteja em casa e escolhem assaltar com violência, enquanto poderiam, discretamente, visitar apenas casas desertas. Do mesmo jeito, nossos ladrões de carro se interessam pouco por carros estacionados; eles preferem arrancar o motorista de seu lugar. Furtar não está com nada, roubar é que é bom. O sequestro é o auge e a solução dessa contradição: sequestrando, é possível ganhar um dinheiro e, ao mesmo tempo, gozar de um poder absoluto sobre o corpo da vítima.

A economia de mercado inventou um mundo em que a diferença social pode ser organizada pela distribuição (variável) de bens e riquezas. Em princípio, nós nos distinguimos pelas posses ou pelo consumo, não por privilégios de nascença e ainda menos pela força. Ora, a prática do sequestro expressa a nostalgia de um mundo pré-moderno, em que a captura é a verdadeira afirmação de supremacia. Não é preciso comparar marcas de carro, casas na praia ou qualidades dos vinhos que tomamos: quem se deixa prender está por baixo.

Claro, a estética do mercado é cafona, kitsch. E sua ética é pouco heróica. Afirmar-se esbanjando consumo é menos dramático do que enfrentar a rua de arma ou espada na mão. Claro, o desejo de ter mais bugiganga do que meu vizinho não é uma fantasia muito nobre.

Querer esmagá-lo de inveja é mesquinho, mas talvez seja mais civilizado do que esmagar seu corpo a marteladas ou prendê-lo num cubículo.

Em suma, vivemos um conúbio estranho entre nossos sonhos liberais de consumo e nossa nostalgia de um passado escravagista. Nossos criminosos, já disse, vivem o mesmo conúbio: gostam de sequestrar porque, em nossa cultura, parece que enriquecer é um prazer, mas dominar é um prazer maior.

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