No dia 10 de fevereiro, na cela de um presídio de segurança máxima do Estado de Nova York, Jack Henry Abbott, 58, trançou seus cadarços com seus lençóis e enforcou-se.
Abbott foi preso muito jovem por estelionato. Na cadeia, ele matou outro prisioneiro durante uma briga. Condenado, continuou atrás das grades. A lei americana permite que, uma vez esgotada a pena mínima prevista pelo crime, o detento possa pedir sua liberdade condicional. Os pedidos de Abbott foram sistematicamente recusados por ele ser terrivelmente rebelde. Passava mais tempo nas solitárias do que nas celas comuns.
Em 1980, Norman Mailer, escritor americano, pesquisava a vida carcerária. Abbott conseguiu fazer-lhe chegar uma carta, começando assim uma longa correspondência. Mailer foi conquistado pelas histórias, pelas idéias e pela prosa de Abbott. Logo as cartas do presidiário foram editadas num livro: "In the Belly of the Beast" (No ventre da besta). Mailer escreveu o prefácio.
Graças à publicação do livro e ao apoio dos círculos literários progressistas, Abbott obteve, enfim, a liberdade condicional. Cartas de editores e do próprio Mailer garantiram, perante a comissão que examinava o pedido de Abbott, que ele voltaria para a sociedade tornando-se escritor em Nova York.
Abbott foi para Nova York. Mas, seis semanas após sua liberação, ele envolveu-se numa briga e, numa ruela do East Village, matou a facadas Richard Adan, 22, superintendente noturno de um bar. Consternação de Mailer e dos outros protetores. Abbott voltou para trás das grades, de onde, em 1987, publicou outro livro, "My Return" (Minha volta) -uma versão teatral do processo pelo assassinato de Adan (em que ele foi condenado à prisão perpétua). Enfim, poucos dias atrás, como já disse, o eterno presidiário conseguiu sair da prisão. De vez.
Li o primeiro depoimento de Abbott quando saiu, no começo dos anos 80. Poucos anos antes, Michel Foucault publicara "Vigiar e Punir" (1975). Segundo o espírito da época, os presos, depois dos loucos, passavam a fazer parte dos marginais cuja revolta poderia redimir o mundo. Para quem acreditasse na revolução dos derrelitos, o livro de Abbott era perfeito: a partir do relato de uma vida desperdiçada, ele gritava sua revolta contra a sociedade inteira.
Nessas semanas, reli "In the Belly of the Beast" e li, pela primeira vez, "My Return". A força do texto permanece intata. Abbott continua sendo um dos críticos mais virulentos do sistema carcerário. Ainda vale seu argumento mais famoso: queremos reeducar quem erra para que ele possa integrar-se numa sociedade de homens livres. Para isso, encerramos o sujeito numa prisão. Curioso método pedagógico, não é?
É possível ver, no destino de Abbott, uma ilustração dos paradoxos da exigência de liberdade que está ao centro de nossa cultura. Um ideal de autonomia absoluta nos define. Ele nos fustiga sobretudo no momento da adolescência, quando cada um descobre que parte de sua liberdade será sacrificada sobre o altar da integração social. Abbott foi para a prisão bem nessa altura da vida e sua história demonstra que aprisionar um adolescente não é uma boa idéia. Ele tornou-se adulto na prisão: todas as leis da convivência social lhe apareceram na forma de imposições brutais. Nessa condição, ele escolheu a intransigência: a solitária parecia-lhe preferível a qualquer obediência.
Abbott se proclamava comunista e marxista. Em seu primeiro livro, ele elogiava Castro e Lênin por eles terem respeitado e amparado, respectivamente, as prostitutas e os sodomitas. Estranho? Nem um pouco: comunismo significava, para ele, não só oposição radical à sociedade que o prendia, mas, sobretudo, abolição do Estado e de qualquer autoridade sobre o indivíduo. O "comunismo" de Abbott é, de fato, um extremismo anárquico e individualista.
É fácil perdoar a ingenuidade do presidiário autodidata. Tanto mais que, na cultura americana, sob qualquer denominação (comunismo, socialismo etc.), corre quase sempre apenas um anseio revolucionário: o da liberdade individual.
Mais difícil é desculpar Mailer, que, no prefácio do livro de Abbott, apresentava o autor como o "descendente de Marx e Lênin" e acrescentava: "Abbott, que é meio irlandês e meio chinês, tem uma pequena mas clara semelhança com Lênin, e o tom de Vladimir Ilitch Ulianov surge de algumas dessas páginas".
As palavras de Mailer são ridículas (pelo excesso). Ao mesmo tempo, elas não são de todo estrangeiras: assim como Mailer, muitos somos fascinados pela marginalidade, propensos a idealizar o crime. Podemos execrar o gesto criminoso que nos impede de viver em paz, mas o mesmo gesto nos seduz de alguma forma. Hollywood explora, mas não produz esse fascínio, que é um verdadeiro corolário de nossa cultura. Pois olhamos para os Abbotts da vida como se eles encenassem, para nós, a autonomia absoluta que, idealmente, nos define -aquela autonomia louca que sacrificamos para conviver.
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