11 abril 2002

"Os Diários da Babá" e a brutalidade das dondocas



A surpresa literária das últimas semanas, nos EUA, é "The Nanny Diaries": os diários de Nanny, em que Nanny é um nome próprio e também significa babá. Por simples boca-a-boca, o livro sumiu das prateleiras das livrarias e já integra a lista dos mais vendidos do "New York Times".
Trata-se de uma ficção, inspirada pelas experiências das duas jovens autoras, Emma McLaughlin e Nicola Kraus, que vivem em Nova York e, nos últimos anos, trabalharam como babás para mais de 30 famílias francamente ricas.

"Os Diários" são corrosivos. O objeto da sátira são as camadas mais privilegiadas da sociedade americana. Ou seja, aquele grupo rarefeito, cujos homens só falam por trás do "Wall Street Journal" e cujas mulheres podem e escolhem ser, propriamente, dondocas: elas não trabalham e, ao mesmo tempo, evitam rigorosamente todas as tarefas domésticas, inclusive qualquer ofício da maternidade (salvo o parto).

É possível que o livro, uma vez traduzido, seja menos exótico para o leitor brasileiro do que para o americano médio. Um exército de faxineiras, cozinheiras, arrumadeiras, motoristas, amas, babás etc. é indispensável para que existam mulheres ociosas de classe alta. Esse exército é mais acessível no Brasil do que nos EUA. Somos pobres: aqui a dondoquice é mais barata.
A dondoca do livro é a senhora X., mãe de Grayer (quatro anos). Ela consegue desrespeitar o horário de Nanny até no dia de sua formatura. Ela estende com desenvoltura as tarefas da babá, que acaba servindo de office-boy, com Grayer a tiracolo. Também, ela não sabe calcular direito o tempo que Nanny dedica a sua função e que, portanto, deve ser remunerado. Se lesse "Os Diários", a senhora X. não entenderia: como é possível que Nanny se queixe? Elas não eram amigas? E não é maravilhoso ocupar-se de uma criança como Grayer? Aqueles dias de 16 horas que Nanny passou brincando com o menino, no verão, não eram também férias? A senhora X. acharia que Nanny é ingrata, pouco dedicada.

Se a história acontecesse em São Paulo, provavelmente atribuiríamos os abusos ao abismo da diferença social e à famosa "familiaridade" cordial da elite brasileira. A babá -argumentaríamos- é abusada por ser socialmente uma "ninguém" e por ser, portanto, incluída na família que a emprega, como uma cinderela.

Mas a história acontece em Nova York. Nanny não é uma gata-borralheira. Ela é uma jovem universitária de classe média urbana: o dinheiro pode impressioná-la, mas não intimidá-la. Quanto à família, a de Nanny é bem mais sólida e acolhedora do que o lar dos X.

Por que, então, o trabalho doméstico pode ser igualmente abusivo tanto em São Paulo quanto em Nova York? A explicação parece estar com a dondoca. Ela não se dedica a produzir riqueza, que é a atividade graças à qual os homens, tradicionalmente, justificam seu afastamento das tarefas materiais necessárias para a vida (tipo: não sei nem semear, nem matar galinhas, mas trabalho na Bolsa e, assim, compro grão e galinhas mortas).

Ora, apesar de não trabalhar, a dondoca também recusa as tarefas básicas de manutenção e reprodução da vida, como preparar os alimentos e cuidar dos filhos. Com isso, ela sofre, como o mestre do qual fala Hegel, quando descobre que o escravo, por ser o único que trabalha, fica com os segredos da criação e da produção. Ela desespera-se diante de sua própria inépcia. E, no fundo, odeia seu exército de ajudantes (considerando-os sempre incompetentes), pois os culpa por ela ter perdido o controle sobre a casa. As dondocas brutalizam empregadas e outros fâmulos porque não toleram sua própria incapacidade de cozinhar ou arrumar. Brutalizam a babá ou a ama porque não toleram sua própria incapacidade de ser mãe. Assim: detesto você porque não sei preparar um sanduíche ou trocar uma fralda.

Mas o que faz a dondoca de Park Avenue todo santo dia? Como consegue não se ocupar nunca dos filhos? É preguiçosa? Será que corre de amante em massagista, procurando prazeres inconfessáveis? Nada disso. Ela é ocupada pela necessidade (crucial em seu mundo) de manter o status da família. A dondoca moderna trocou a tarefa de produzir e reproduzir a vida pela tarefa de produzir e reproduzir status. Sua responsabilidade é fazer que a família seja invejável. Nas Park Avenues do mundo, as dondocas devem saber sempre quais são, neste ano, os lugares certos para as férias, quais as lojas, as escolas, as amizades, os restaurantes, as lavanderias, as marcas que garantem a invejabilidade. É um tempo pleno.

Quanto aos filhos, os leitores dos "Diários" aprendem que eles interessam à mãe dondoca só na medida em que contribuem ao status da família. As dondocas não conhecem o cheirinho de cocô, não guardam na camisa os restos de vômitos repentinos, não passam noites medindo febres que nunca param. Das crianças, elas amam apenas o curriculum.

A perda é delas. Como suspeitam que talvez tenham renunciado à melhor parte, elas se vingam na babá. De raiva.

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