"Homem-Aranha" pré-estréia hoje no Brasil. Nos EUA, o filme estabeleceu dois recordes: arrecadou US$ 114,8 milhões no primeiro fim de semana e mais US$ 72 milhões no segundo.
Muitos comentam que isso era previsível: no 11 de setembro, fez falta um super-herói que parasse os aviões, salvasse os passageiros e desse umas boas chapoletadas nos terroristas. O Homem-Aranha, sendo nova-iorquino, seria perfeito.
É possível que o sucesso do lançamento americano tenha a ver com o ataque do 11 de setembro. Mas o filme não é apenas um sonho infantil, em que aparece o objeto de nossos anseios do tipo: "Quer um super-herói? Lá vai ele".
Certo, é impossível viver nos EUA, hoje, sem levantar os olhos, com apreensão, quando um avião voa baixo. No entanto o desejo de ver super-heróis patrulhando o céu e, quem sabe, participando da guerra é menos importante do que a pergunta aberta pelo novo conflito: "Além da vingança, qual é nossa razão para lutar?". Um ataque e uma guerra só podem criar a necessidade de redefinir o sentido da comunidade nacional.
O Super-Homem dizia que ele lutava pela justiça, pela liberdade e pelo "american way". Mas o que é, hoje, o "american way"? Ironicamente, alguém sugerirá: é a bolha da Bolsa de Valores dos anos 90? É a gestão da Enron? A prudência de Greenspan? O yuppismo dos anos 80? A contracultura dos 60? A raiva de Timothy McVeigh?
Provavelmente, o futuro do dito império americano depende da capacidade de o país descobrir mais uma vez sua razão de ser. É uma missão não para os marines, mas para a cultura popular. "Homem-Aranha", embora tenha sido realizado antes do 11 de setembro, responde a esse chamado.
Como quase todos os super-heróis, Peter Parker, um adolescente da pequena classe média, tímido e estudioso, é órfão. Lembrete: o sujeito americano é aquele que, para fazer a América, sepulta seus antepassados e decide afirmar-se por seus esforços próprios.
Por acidente, Peter é picado por uma aranha geneticamente turbinada e ganha força, resistência, premonição e agilidade sobre-humanas. O que deve fazer com isso?
Ele poderia facilmente conquistar a moça amada e pagar as contas do fim do mês brincando de luta livre. Em contraponto, o caminho do super-herói é austero: para evitar vinganças contra seus próximos, ele deve esconder sua identidade e renunciar a paixões e amores. Por que escolher essa vida solitária?
Uma resposta vem do tio de Peter: com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Há uma idéia crucial no "american way": o dever do "self-fulfillment", erroneamente traduzido, às vezes, como auto-satisfação. Ora, "fulfill" não designa a gratificação, mas o cumprimento, no sentido em que são cumpridas profecias e obrigações. O dever de "self-fulfillment" é a tarefa de auto-realizar-se, a obrigação de fazer o máximo de que somos capazes. O sumo pecado é o desperdício de capacidades.
Cuidado: Peter adquire seus poderes por acaso. Ele tem o dever de ser plenamente o que os acidentes da vida fizeram dele. A regra lembrada pelo filme não é: "Seja você mesmo", em que o "você" seria uma entidade profunda (mote de família ou patrimônio genético) à qual deveríamos fidelidade. A regra diz, ao contrário: "Realize-se segundo os acidentes que definem sua vida".
É possível entender muitos dilemas políticos americanos, à condição de levar em conta a força cultural dessa obrigação. Por exemplo, as hesitações dos programas assistenciais nos EUA provêm não de uma falta de generosidade, mas desta dúvida: será que, ajudando-os, não vamos impedi-los de dar o máximo de si?
Outro exemplo são as hesitações entre intervir e não intervir no mundo (Somália e Bósnia, sim, mas demorou. Ruanda, não, mas a culpa ainda dura. E o Oriente Médio?). A prudência estratégica entra em conflito com a regra da auto-realização. O fato de os EUA serem, hoje, a única superpotência produz a obrigação de intervir, exatamente como os poderes adquiridos obrigam Peter a tornar-se o Homem-Aranha. E, às vezes, esse imperativo moral é mais importante do que os próprios interesses econômicos e políticos.
Há mais. Peter, ao descobrir seus novos poderes, tenta ganhar um dinheiro numa luta. O organizador, que se recusa a pagar-lhe o devido, é vítima de um assalto. Peter deixa o assaltante fugir: por que socorrer um safado? Acontece que o criminoso que ele deixa escapar cometerá um ato que tocará Peter dolorosamente. Ou seja, pegue o criminoso -não porque ele é ruim, mas porque amanhã pode ser sua vez. É a versão ética de Adam Smith: não precisa evocar grandes princípios, basta pensar em si mesmo, pois o bem da comunidade coincide com os interesses de seus membros.
Em suma, os filósofos encontrarão no "Homem-Aranha" um resumo pop de Alan Gewirth ("Self-Fulfillment") e de John Rawls ("Teoria da Justiça").
Para o público dos EUA, o filme lembra e celebra traços do "american way", que, numa hora grave e densa de interrogações, ajudam a redescobrir a vocação nacional americana. Para que mais pode servir a cultura popular?
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