Nestas semanas, em que se fala tanto em pedofilia, a Suprema Corte dos Estados Unidos pronunciou-se em matéria de pornografia infantil.
Eis um resumo do caso. Há décadas, a lei federal americana proíbe a produção, a distribuição e a posse de pornografia infantil, definida como "a apresentação visual de menores engajados em atos sexuais". A existência dessas imagens comprova que houve abuso sexual dos jovens atores: proibi-las é uma maneira de proteger os menores.
Em 1996, uma nova lei estendeu a definição de pornografia infantil para incluir qualquer imagem "criada, adaptada ou modificada de tal forma que alguém, identificado como menor, pareça ser engajado num ato sexual". Desde então, os atores de um filme pornô podem ser maiores de idade, mas, se um comentário durante o filme sugere que eles têm 15 anos, eles são "identificados como menores" e a obra torna-se pornografia infantil.
Imagine que um sujeito receba por e-mail um convite para acessar um site de "adolescentes lascivas". Ele clica e transfere uma imagem para seu disco rígido. Seja qual for a idade efetiva dos atores, segundo a lei de 1996, o sujeito poderá ser preso por uso de pornografia infantil, pois a propaganda inicial identificava as atrizes como "adolescentes".
Além disso, o texto de 1996, colocando o acento sobre "parecer" (e não "ser") menor, decretava a equivalência perante a lei de obras filmadas com atores reais e obras produzidas por tecnologia digital, sem ator nenhum. Quem viu o filme "Final Fantasy" sabe que, logo, será possível gerar imagens digitais de qualidade igual à das imagens filmadas. Num dia próximo, serão produzidos filmes pornográficos sem atores -espécie de desenhos animados imitando perfeitamente a realidade. Não haverá como saber se um DVD de pornografia infantil é a reprodução de uma cena real ou é fruto de escrituras eletrônicas. Para a lei de 1996, a pornografia infantil digital (portanto sem atores) é tão culpada quanto a antiga. À primeira vista, por que não? Qual a relevância, uma vez que reprovamos ambas?
Ora, a Free Speech Coalition (coalizão para a liberdade de expressão, uma associação de produtores de material erótico) recorreu à Justiça contra a lei de 1996, alegando que essa nova definição da pornografia infantil impunha uma restrição à liberdade de expressão, garantida pela Constituição americana. Incriminando representações visuais cuja produção não envolve (e, portanto, não corrompe) crianças reais, a lei não estaria reprimindo crimes efetivos contra os menores, mas perseguindo gostos ou desejos.
No dia 16 último, a Suprema Corte decidiu a favor da Free Speech Coalition, por seis votos contra três. No relatório da decisão, o juiz Anthony Kennedy chegou a notar que a lei de 1996 era suficientemente vaga para justificar que alguém quisesse proibir "Romeu e Julieta" (que eram dois adolescentes). Sem medo de tomar uma atitude que hoje é pouco popular, a Suprema Corte lembrou que a pornografia infantil é proibida com o propósito de proteger o menor contra abusos efetivos. Mas a lei não se propõe a controlar e perseguir sujeitos que teriam fantasias pedofílicas. A lei pode reprimir atos, não idéias ou imagens.
A leitura das petições e da decisão da Suprema Corte me surpreendeu. Revelou-me a facilidade com a qual podemos aceitar a perda de distinções que são cruciais para nossas liberdades -como a distinção entre a (legítima, necessária) repressão dos atos e a (problemática) perseguição de fantasias e imagens.
Sofremos de um perigoso moralismo reativo: quando uma série de fatos de crônica nos indignam, logo sonhamos com leis que regrem não só os atos, mas também os desejos e as intenções. E com uma Justiça que se encarregue de punir, com o mesmo zelo, tanto os crimes de fato quanto os pecados da alma.
Os pornógrafos estão entre as vítimas ideais desses sobressaltos morais. A censura ataca aqueles que todos gostaríamos de silenciar. No caso, quem estará a fim de defender a imagem um pouco sinistra do pedófilo que produz, distribui ou procura pornografia infantil na internet? E é fácil condescender à idéia de que essa procura pode alimentar, mais cedo, mais tarde, uma atividade predatória. Então por que não prevenir o crime policiando as fantasias e os desejos malsãos?
Pois é. Está anunciada para agosto (junho nos EUA) a estréia brasileira do novo filme de Steven Spielberg, "Minority Report - A Nova Lei", com Tom Cruise. É a adaptação de um conto de Phillip K. Dick, que nos leva para um mundo em que a biotecnologia permite antever os atos. Portanto é possível acusar e prender as pessoas por crimes que cometeriam amanhã. De uma certa forma, é o que aconteceria se a lei policiasse as intenções e os desejos, sob o pretexto de que eles podem levar aos atos.
O mundo que Spielberg trará para a tela -assim como o mundo que fosse regido pela lei de 1996- não precisa, para existir, ser a obra de nenhum censor maluco. Bastamos nós.
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